Dois direitos do paciente são observados em contraposição no ecossistema da beira do leito: ser tratado com métodos validados e beneficentes e recusar a se submeter ao tratamento proposto. A recusa já foi considerada uma aberração na relação médico-paciente. Há cerca de meio século, trabalha-se uma naturalidade por argumentos éticos, morais e legais. Justificativas para uma atitude mais empática do médico com o paciente para a aceitação de suas objeções projetaram uma visão de dragão para o paternalismo, algo agressivo e violento e inadmissível no ecossistema da beira do leito.
“… O paciente se recusar é mesmo possível…? Indagou um residente de medicina meio atônito no seu primeiro dia de efetivo exercício dos deveres profissionais. “…Sim, muitas vezes a decisão não ficou “decidida”, ela foi apenas a formulação de uma expectativa…” Foi seguido pelo colega: “… Quer dizer que o meu dever de fazer que até jurei fica regulado pela avaliação do paciente, um leigo que me procurou porque não pode fazer sozinho…? Essa turma prometia…
Zonas cinzentas entre direitos e deveres de cidadania ocorrem com frequência no ecossistema da beira do leito. Enquanto textos científicos esforçam-se para serem fontes de clareza sobre o que existe para ser feito e cumprir deveres profissionais, os ajustes sobre como pode ser feito nem sempre estão claros. Muitas inconsistências acontecem e azedam muitas relações médico-paciente… Em geral, as menos conectadas.
Pela difusão da Medicina baseada em evidências nos anos 90 do século passado, uma globalização do útil e eficaz com destaque para o resultante de mais de uma pesquisa randomizada ou fruto de metaanálises provocou um sentido de obrigação profissional a ser cumprida sempre que possível. “… Se for dimensão de efeito I, probabilidade de certeza A, professor, é o que eu tenho que aplicar no caso, senão serei antiético…”. “... Sim, residente, seria o ideal, mas, pela ética, você necessita verificar antes as condições clínicas gerais do paciente e o seu desejo de se submeter…”. “… Quer dizer que preciso individualizar cada recomendação?…” “… Correto, o médico ético sente-se responsável pelos efeitos possíveis de serem previstos da sua orientação, e eles comumente incluem adversidades a serem evitadas…” “… Professor, o senhor me faz sentir uma bula ambulante… ” “… Então, cuide para não ficar enrolado…“.
As sociedades de especialidades deram forma e assumiram a legitimidade das diretrizes clínicas. Em decorrência, as atualizações com seus maravilhosos quadros sintéticos, inclusive coloridos, ganharam um status de algemas no médico, elas o direcionam para onde “é preciso ir”. Cabe à Bioética alertar que é mais adequado o rótulo de bússolas, para nortear caminhos habituais e alternativos. “… Não seria mais moderno waze, professor?”… “… Residente, waze é você orientando os caminhos… e se não quiser seguir, não é obrigado…”. “… Entendi o recado, se eu posso escolher, o paciente também pode…”. “… É por aí…”.
Há as evidências no uso das diretrizes clínicas. Elas não são os resultados da pesquisa propriamente ditos, mas as interpretações das conclusões a que se agrega valor de aplicação (dimensão de efeito e probabilidade de certeza). Há o evidente no paciente, composição de fatos e dados reais que regula a condição da evidência ser um meio da tecnociência para alcançar um objetivo humano.
Há cerca de meio século, a Bioética ressalta que o alvo da atenção do médico é um ser humano. Assim, o ecossistema da beira do leito contém, invariavelmente, uma coleção de imprevisibilidades biológicas e emocionais que gera vários níveis de realidade sobre a aplicação da tecnociência, a serem enquadrados nos limites da ética.
As eventualidades tornam as poderosas evidências tecnocientíficas obtidas sob regras e exclusões reféns de inclusões desordenadas de comorbidades, evoluções inesperadas e … o terrível não consentimento pelo paciente. É contribuição pedagógica do ecossistema da beira do leito para o jovem médico cujo número de CRM ainda não desenvolveu os calos da profissão. “… Professor, se o paciente disser não, posso insistir?…” “… Sim, pode… e dependendo da situação, deve…” “… Estarei sendo, então, paternalista…” “… É isso mesmo, um paternalismo construtivo, mas pega leve…”.
O paternalismo é instintivo no cuidado do paciente desde a Grécia de Hipócrates. Ainda na Antiguidade, na Babilônia, doentes sentavam-se em praça pública e os transeuntes tinham obrigação de parar, interessar-se e recomendar alguma experiência que porventura tivessem. Se o paternalismo faz parte da genealogia do ser médico, é de se pensar se ele pode ser abolido “por decreto”. A complexidade do ecossistema da beira do leito dá espaço para autonomia e para heteronomia.
A Bioética lembra, entretanto, que se impõe adjetivar o paternalismo. O fraco difere do forte porque não comporta a inadmissível coerção de um autoritarismo. A diferenciação foi o reconhecimento da validade de uma composição ética entre autonomia e paternalismo, o fraco.
Friedrich Wilhelm Nietzche (1844-1900) ajuda a compreender o significado do respeito ao direito à autonomia sem eliminar atuações de paternalismo fraco. O filósofo admitia que indivíduo soberano nas decisões é aquele capaz de se tornar autônomo tanto quanto possível em relação ao meio por utilizar a memória com flexibilidade num campo de forças técnicas e afetivas. De certa forma, o paciente que não consente move-se entre recomendações tecnocientíficas de mãos dadas com a vivência acumulada num campo de desejos, preferências, objetivos e valores, de modo que uma das rotas a que tem direito é se distanciar do médico. A flexibilidade, porém, sensível a novas argumentações pode indicar ao paciente que o médico não pretende que ele deixe de ser ele mesmo. “… Professor, pode ser um não provisório?… “… Pode residente…”.
O escritor François de La Rochefoucauld (1613-1680) afirmou que, raramente, percebia bom senso nas pessoas, exceto quando elas concordavam com ele. Cerca de 400 anos depois, é pensamento aplicável ao ecossistema da beira do leito. Perante o não consentimento do paciente, uma reação do médico pode ser não, exatamente, negar o direito do paciente, mas considerar que ele não possui a capacidade para aplicar a memória que liga o seu interior ao exterior a fim de tomar a decisão “correta”. Daí pode eclodir a disposição do médico de se comportar paternalmente. “… Professor, com a feminização crescente da medicina, será que vão criar o termo maternalismo…? “… Doutora, caberia muito bem…”.
Em linhas gerais, o médico não deseja, sinceramente, ficar indiferente a consequências nocivas previsíveis do não consentimento, e se sente impelido a manter um interesse genuíno na resolução do caso conforme o estado da arte, o que inclui ter a curiosidade sobre as motivações pela “pior” escolha. O médico incomodado parte, assim, para arquitetar uma segunda primeira opinião, ou gêmea univitelina, ou com algumas diferenças mais convincentes. Habitualmente, com um olho no bem do paciente e o outro que usa a lente da medicina defensiva na própria imagem profissional de quem não quer ser visto como um “mau pai” que abandona suas responsabilidades.
A Bioética sonha com um olhar ciclópico, “colar” um olho integrativo na testa do médico… Evidentemente, após obter o consentimento livre e esclarecido… “… Professor, querer ser atendido não significa, então, aceitar o atendimento…” “… Não necessariamente…” “… E professor, a causa de não aceitar o atendimento é falta de confiança no médico…” “… Não necessariamente…” .
Pois é, certo percentual de médicos transforma a frustração da expectativa da aplicação do método em receio de vir a ser acusado de imprudente e/ou negligente. “… Professor, que faço para não ter o meu impedimento julgado antiético?… “…Não economize tinta da sua caneta justificando no prontuário do paciente… Melhor, não tenha pena de bater no teclado, quanto mais bater, menos você apanhará…”.