O jargão médico adotou termos da guerra. Falamos invasão de células, defesa por anticorpos, dose de ataque, tática terapêutica, nova arma farmacológica, estratégia de combate, gatilho para a manifestação clínica, arsenal terapêutico. Já o paciente costuma verbalizar doenças como um inimigo que o desafia e precisa ser imediatamente derrotado numa arena hospitalar. É humano, contudo, é pensamento negativo na medida em que prejudica a compreensão leiga sobre os limites da reversão da história natural, evidências científicas e alocação de recursos. Recentemente aconteceu muita polêmica sobre o benefício da feniletanolamina sob o impacto do argumento que não há tempo para perder a oportunidade de “vitória conforme anunciada” aguardando uma eventual validação pela ciência.
Guerra e paz guardam analogia com doença e saúde. Sun Tzu (545 ac-470 ac) foi um general chinês que viveu um pouco antes de Hipócrates e escreveu A Arte da Guerra, um livro tão espetacular e atemporal que podemos encontrar uma edição recente nas livrarias. Dois conselhos são transportáveis para o ecossistema da beira do leito: na guerra prepare-se para a paz e na paz prepare-se para a guerra (terapêutica e prevenção) e se você conhece o inimigo e a si mesmo, não precisa temer o resultado das batalhas; se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá uma derrota; se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas (valor da experiência). Os residentes de Medicina talvez não saibam, mas são motivados a aprender pelo que representam estas sábias palavras: relações de forças entre indutores e controladores de doença.
Vontade de prosseguir vivendo e desejo de uma estratégia de desligamento da vida sentam-se em cada lado da gangorra movimentada pela conscientização que o final da vida está irremediavelmente próximo. Sucedem-se fases de negação e isolamento, raiva, negociação, depressão e aceitação, conforme o cinquentenário ensinamento da psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross (1926-2004). Com 50 anos a mais de progresso tecnocientífico da Medicina à disposição para influir positivamente na história natural de doenças graves, parece válida uma tentativa de aproveitamento das fases direcionada para a figura do médico.
Bioamigo, mentalize a beira do leito como uma ilha cercada pelo tabu da morte por todos os lados. Lá está um médico com disponibilidade de recursos para melhorar o prognóstico. Ele constrói e aplica estratégias sem nenhum tangenciamento à futilidade/obstinação terapêutica. Chances de sucesso, expectativas compartilhadas. Mas elas falham. O paciente evolui para a terminalidade da vida. As adaptações para o médico das cinco fases de Kübler-Ross eclodem: negação ao fracasso profissional (“não me conformo que a doença é mais potente do que a minha competência”); raiva pela sensação de perda de controle e a irritação (“por que evoluiu mal comigo?”) que contribui para o desenvolvimento do burnout (“onde descarregar?”); negociação permanente, árdua e com obrigação de clareza para si mesmo sobre condutas alternativas e auto consentimentos (“como preservo o profissionalismo?”); não exatamente depressão, mas tristeza como expressão da frustração das próprias expectativas sobre um fundo narcísico envolvendo doses de onipotência e de onisciência profissionais (“sinto-me muito”); a aceitação das realidades pela conscientização que procedeu no limite da excelência em Medicina (“fiz o que pude, devo me preparar para o destino”).
A Bioética da Beira do leito valoriza a plena consciência destas fases na pessoa do médico. A maturidade profissional articula-se com a resignação às verdades- especialmente as nuas e cruas- e com o repúdio a soberbas. Humildade como afeto à beira do leito! Um ideal que não é um mandamento, mas serve de guia moral e guardião da dignidade humana, particularmente na terminalidade da vida.
Procura-se um humanismo! Testemunhas afirmam que faz tempo que foi visto pela última vez. (Muitos) exageros à parte, movimentos de resgate do humanismo flertam com as pinturas de séculos atrás onde o médico está sentado ao lado do paciente expressando uma caridade reativa ao sofrimento. Embora a Bioética ainda não tivesse nascido, era uma meditação Bioética. Agora que a Bioética está adulta, a meditação como essência do humanismo transforma-se do apenas solilóquio de antigamente para um acompanhamento do diálogo com o paciente.
De carona em René Descartes (1596-1650) “Na tomada de decisão, penso em você, logo você nela existe” é ajuste para o humanismo contemporâneo especialmente desejável como componente do profissionalismo na terminalidade da vida. Não se pode esquecer, contudo, do original “Penso (em mim), logo existo (continuo existindo como médico)”. De fato, qualquer cobrança por humanismo colide com a tradicional frieza defensiva do médico. Nos insucessos, a porta de freezer fica convidativa. Os passos são influenciados pela insegurança ética e jurídica – vale dizer, receios de interpretações de imprudência e negligência- para lidar com os infinitos níveis de realidades da Medicina como uma ciência de incerteza e uma arte de probabilidade (William Osler, novamente).
A Medicina é patrimônio que as sucessivas gerações dos filhos adotivos do Pai da Medicina precisam preservar para inspirar soluções para as necessidades de cada tempo. Na terminalidade da vida, as carências da Medicina adquirem uma conotação atemporal. Assim, é útil considerar como matéria-prima para novas significações do humanismo, o ensinamento de Hipócrates: “… Quanto à medicina, tal como eu a concebo, penso que o seu objetivo, em termos gerais, é o de afastar os sofrimentos do doente e diminuir a violência das suas doenças, abstendo-se de tratar os doentes graves para os quais a medicina não dispõe de recursos…”. O “genérico” desta consideração que muitos entendem que não é original do grego corresponde a: Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre. Muito bonito, mas, a beira do leito da sociedade contemporânea está longe de ser vista como uma Avenida Paulista que em São Paulo liga Consolação ao Paraíso (bairros). Ou seria vice-versa?
Cerca de vinte e seis séculos depois, a primeira parte desta tríade modificou-se substancialmente. Se for verdade que começamos a morrer quando nascemos, é verdade também que a Medicina tem adiado dias e horas do preenchimento dos certificados de óbitos. Porém, eles chegarão e serão detalhadamente anotados. Já as demais partes – alívio e consolo- persistem numa relação entre paliação e vigilância sobre crueldade que se acha em construção. Constitui um Princípio fundamental da Ética Médica brasileira: XXII do Código vigente- Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.