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552- Bioética intercessora entre o poder da Medicina e a terminalidade da vida (parte 5)

Notícia alvissareira! Expande-se o contingente de profissionais da Saúde interessados em Medicina Paliativa. Favorece benefícios tão distintos quanto indutores de dignidade humana como controle de sintomas, suporte à (ainda) sobrevida com qualidade, apoio ao humor e redução de desperdícios de modo geral. De algum modo, diminui as objeções naturais de se falar na morte, comportamento já observado entre os gregos antigos que raramente pronunciavam o nome de Tanatos, filho da Noite e irmão de Hipnos(sono) por superstição.  Ademais, contribui sobremaneira – idealmente com a parceria da Bioética- para reduzir perante a terminalidade da vida comportamentos profissionais inadequados motivados por dois subprodutos do narcisismo do médico na beira do leito.

O primeiro denomina-se Hipocondria moral. Lembrando o Doente Imaginário de Molière (Jean-Baptiste Poquelin, 1622-1673), seria Culpa Imaginária. Significa que o médico está constantemente preocupado em ficar com culpa. Ele teme que sua imagem reflita no “espelho da ética” como um infrator de algum artigo do Código de Ética Médica. Por exemplo, não ter cumprido um protocolo assistencial… pelo não consentimento do paciente expresso num testamento vital. O segundo comportamento ocorre no campo da omissão e se chama Imunidade cognitiva. Nele, o médico afasta-se do que possa incomodar a si mesmo. Por exemplo, ele mantém a prescrição sem discutir se já não seria uma obstinação terapêutica.

Doença representa algum poder transformador no “corpo e na alma”. Não é fácil entender que doença não é um castigo. Aliás, já faz 26 séculos que Hipócrates (460 ac-370 ac) eliminou-a como uma punição dos deuses. Muito menos, doença não chega de fora e passa a habitar um corpo. Thomas Sydenham (1624-1689), o “Pai da Clínica britânica” adquiriu prestígio insistindo que a doença é um processo natural e não sobrenatural: “… nada escrevo que não seja fruto da minha constatação”… Doença é dinâmica com rótulos classificadores. Doença é um processo do próprio corpo desencadeado por si próprio (autoimune, predisposição genética, incorporação de fatores de risco) ou por reações dele a influências desde o exterior (bactérias, traumatismos, poluição).

A Constituição brasileira na Seção II Da Saúde dispõe no Art. 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado. Este alto propósito traz a questão: Mas, o é que mesmo saúde? Definir saúde é  tarefa praticamente impossível, aliás, cada vez mais em tempos de pós-modernidade, pós-verdade, verdades líquidas (Zygmunt Bauman, 1925-2017), engenharia genética e invasão da inteligência cognitiva por tecnologias pela qual o médico ensina o robô a cuidar da saúde humana e este aperfeiçoa o médico.

Múltiplos aspectos da tradição e da inovação despejam liberdades criativas e ambiguidades no conceito de saúde. Pelos muitos caminhos, aspecto concreto é que houve notáveis conciliações entre etiologia, fisiopatologia, terapêutica e prognóstico que determinaram ganhos de cronicidade em enfermidades. Resultaram mais idosos e com idades próximas aos 90-100 anos transformando concepções sobre significados de estar doente e as aproximando da visão de se fazer adaptado a cronicidades. Doente saudável!

Nas entrelinhas, está a consideração que temos doenças e não que somos nossas doenças, mas o sujeito delas, Além disto, o alerta que habilidades e humanidades desde a Medicina precisam focar não somente no que está inadequado, mas também no que está adequado no paciente. Órgãos e sistemas doentes costumam conviver com órgãos e sistemas saudáveis em mesmo corpo, associação que não deve ser desprezada pelo médico quando estabelece diálogo com paciente cognitivamente capaz em terminalidade de vida.

A recomendação universal da Medicina – reforçada por Potter,  o van Rensselaer , não o Harry-  é que o médico deve perseguir a máxima obtenção de resultados humanos tanto na preservação da pessoa saudável, quanto na situação em que adoece. O cumprimento requer respeito às individualidades da pessoa- biológicas e cognitivas. Assim, justifica-se acumular uma coleção tanto de não consentimento porque o adequado à circunstância fica aquém do ideal da literatura, quanto de dilemas de consciência profissional por solicitações do paciente fora da rotina (mastectomia preventiva, por exemplo).  Neste contexto, a Bioética da Beira do leito reforça que é bem conhecendo os limites do conhecimento/desconhecimento da Medicina  que se evitam traços tanto corruptivos – que forçam- quanto inibidores- que obstruem- do cientificismo e do tecnicismo sobre o humanismo.

Um velho e ainda reluzente símbolo da ética em Medicina é a relação médico-paciente – que a Bioética da Beira do leito prefere chamar de conexão médico-paciente para enfatizar uma expressão mais comunicativa, a ideia  que  o médico cuida dos modos com que determinado paciente reage globalmente a sua doença. William Bart Osler (1849-1919) não conhecia o termo conexão, mas o intuía, pois afirmou há mais de um século: “… Preciso conhecer o doente que está por trás da doença…”. O “Pai da Medicina moderna” – pais é que não faltam na Medicina, aliás se algum bioamigo conhecer uma mãe em Medicina, avise-me, por favor- advertia que a beira do leito admite uma arte que se serve da ciência.

A mistura de conteúdo e história da Medicina com sentimento e emoções justifica, homenageando Liev Tolstói (1828-1910), um ajuste do início do romance Anna Karenina “… Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes são cada uma a sua maneira…” para caber no ecossistema da beira do leito como alerta sobre as individualidades clínicas cheias de contrastes: “… cada ser humano reage de modo peculiar a  sua terminalidade de vida…”. Fator a considerar na pluralidade é a alta chance de desarmonias entre as realidades do final da vida e a confiança da sociedade no poder da Medicina elevado pelo progresso extraordinário. É reforço da constatação já antiga que a inevitabilidade da morte não costuma habitar o pensamento cotidiano das pessoas. Como somos todos, ao mesmo tempo, independentes e dependentes a outros, conflitos resultantes têm número variável de personagens- profissionais da saúde, pacientes, familiares, instituição de saúde, sistema de saúde, profissionais do Direito, religiosos -, cada qual com seus pontos de vista “sobre o outro”.

Doenças crônicas e graves impactam na biografia do paciente, provocam hiatos com o passado e interrompem projeções para o futuro. O bioamigo está cansado de ouvir os pacientes expressarem-se por verbos simbólicos como: “… fiquei diabético…”, “… tornei-me enfisematoso…”, “… gastei minha saúde no cigarro…”, “… peguei uma doença sexual…”. Compreende-se. Nos comunicamos por um idioma tão vivo quanto cheio de metáforas, e, portanto, palavras costumam significar a mais da literalidade. A Bioética da Beira do leito alerta que é preciso decodificar estas construções como exposições de perda, ansiedade e medo e que embutem auto acusação, sentimento de culpa e avaliações transcendentes- Por que tinha que ser eu? Por que justamente agora? Por que não acontece uma resposta ao tratamento? Introduzem alto poder conflituoso, quer latente, quer já exercido, sobre a conexão médico-paciente. Jogados sob o tapete em condição bruta, as representações formam calombos que provocarão ulteriores tropeços. Por isso, a prudência aconselha o médico a prescrutar sentidos ocultos na fala do paciente e, sempre que possível,  os aclarar como “vacinas” contra conflitos. No auge de situações estressantes como na terminalidade da vida, cada palavra, cada entonação, cada gesto dizem muito e mais, especialmente se reacionais a palavras, entonações e gestos da comunicação do próprio médico.  Por isso, é fundamental prestar atenção para se ouvir ouvir – mostrar-se atento à fala do outro-  e se ouvir falar- não dominar o diálogo. Atire a primeira sílaba o médico que nunca passou pela experiência!

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