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550- Bioética intercessora entre o poder da Medicina e a terminalidade da vida (parte 3)

O destaque para o emocional da objeção pelo paciente é motivo para uma ênfase equilibradora com a classificação do poder da Medicina como nutrício. O seu racional é vitalizar (estranho diante da morte, mas diz respeito a enquanto há vida), cuidar bem do outro, atuar com sincero desejo de beneficiar/não prejudicar. Um de seus regramentos é a prudência do médico que calibra atos e palavras. O bioamigo certamente já aplicou os termos contraindicação absoluta e risco proibitivo. Pois é, ao terem desaconselhado fortemente o uso, atuaram no grau máximo de prudência em relação a métodos conceitualmente úteis e eficazes. Parabéns!

Mas, a referida surpresa não é tão surpreendente assim. O poder do paciente de não consentir com o poder  nutrício da Medicina no processo de tomada de decisão está exposto no Art. 22  do Código de Ética vigente: É vedado ao médico deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.  O  livre poder da comunicação do Sim! Ou do Não! pelo paciente esclarecido da sua situação é um contra poder. Instrumento de equilíbrio legitimador!

O exercício profissional no ecossistema da beira do leito é uma sucessão de acréscimo de páginas e colagem de figurinhas representando a experiência. O meu tem uma coleção sobre atravessamentos do contra poder do paciente ao poder da Medicina. Folhear as páginas com o olhar da Bioética permite compreender a diversidade das  expressões da liberdade do estar paciente que impactam fortemente no ser médico.

Não faltam razões para  nos utilizarmos da chamada Bioética principialista no ecossistema da beira do leito – ela foi considerada na elaboração da Resolução do Conselho Nacional de Saúde CNS nº 196/96. Permite elaborar um roteiro organizacional por quatro princípios (beneficência, não maleficência, autonomia e justiça) ajustável aos acontecimentos da beira do leito. Vale para aplicação na morte iminente quando os caminhos adquirem uma plasticidade para a tortuosidade. Curiosamente, a Bioética principialista superpõe os embates da beira do leito aos próprios conflitos de seus princípios. O realce para a terminalidade da vida é sobre o binômio autonomia-consentimento perante sentidos controversos sobre beneficência.

Cotidiano do médico, sua marca é a inquietude. Ouvi na Faculdade.  Uma das conjunturas do processo de final da vida é a capacidade que o sofrimento pela doença- e pelo tratamento- tem para transformar o habitual desejo do ser humano de imortalidade física para expressão de morte digna. Os sentidos e os conteúdos da dignidade da pessoa humana como valor existencial supremo são plurais. A terminalidade da vida exacerba a individualidade e, assim,  não necessariamente, há superposição do entendido pelo paciente a dos demais circunstantes (familiar, profissional da saúde).

Na identificação com o sentido de dignidade da pessoa humana, o rejeitado costuma ser mais numeroso do que o selecionado como aceitável. É peculiaridade que predispõe ao não consentimento. Acentua, pois, as chances de uma troca de “socos de opinião obstinada” entre imposições de deveres profissionais e resguardos por direitos de cidadania. Pode culminar numa sensação de nocaute mental. Quem será o juiz para construir um compassivo “empate técnico”? Recomendo a Bioética!

Oscar Freire (1882-1923) foi um professor de Medicina Legal cuja meteórica e brilhante carreira encerrou-se subita e precocemente. Há cerca de 100 anos, ele organizou os registros de óbitos no Brasil e contribuiu para lhes dar confiabilidade. Era, então, a maior preocupação sobre a terminalidade de vida. Desde então, permaneceu facultativo ter um médico assistindo o nascimento, mas, a sua exigência por ocasião da morte se expandiu para muito além da obrigatoriedade de um preenchimento do Certificado de Óbito.

Neste século XXI, o final da vida apresenta contornos de preocupação moral, ética e legal a reboque de extraordinários progressos das ciências básicas e aplicadas sobre qualidade de vida e expectativa de sobrevida.  Se é verdade que começamos a morrer quando nascemos, tornou-se verdade também que  a Medicina tem adiado o dia e a hora do preenchimento dos certificados de óbitos de cada cidadão brasileiro, em ausência de distanásia. Em 1940, o Brasil tinha cerca de 4% de pessoas com 60 anos ou mais de idade e em 2017, cerca de 14%, percentual em projetada ascensão para as próximas décadas. Não obstante, ninguém pode se considerar bem preparado para lidar com a terminalidade da vida no ecossistema da beira do leito atual. É preciso direcionar conhecimentos e mudar paradigmas!

As resoluções  CFM 1.805/2006 – que trata de critérios para a prática da ortotanásia- e CFM 1995/2012  – sobre diretivas antecipadas de vontade do paciente- são ilustrativas de esforços de órgãos representativos da Medicina para educar sobre a morte perante inúmeros vieses socioculturais e religiosos. A primeira foi incorporada ao parágrafo único do Art. 41 do Código de Ética médica vigente: Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. Já o chamado testamento vital aguarda legislação sustentadora. Observamos um grau de insegurança ética e jurídica sentido pelo médico na atenção a tais resoluções. A Bioética tem interesse em contribuir para assegurar a ambas disposições uma forte consonância deontológica.

Além de ortotanásia e de antecipação da decisão no caso de se tornar incapaz, o termo falência de múltiplos órgãos é de uso recente na terminalidade da vida. Este termo vago de patologia para uma complexidade da causa-mortis representa a antítese da capacitação para a continuidade da vida com boa qualidade adaptada a múltiplos CIDs proporcionada pelo progressivo alcance terapêutico sobre disfunção de cada órgão. Como um professor costumava brincar: “… a farmacologia está ficando cada vez mais cirúrgica…”.

O senso de propósito mais preciso da Medicina sobre doenças que eram insolúveis ou pouco controladas ampliou o poder da Medicina que se sustenta no tripé diagnóstico, tratamento e prevenção. Mais disponibilidade de diagnóstico de certeza,  terapêutica controladora ou reversora e  prevenção por vacina e mudança de hábitos  tornou-se referência do compromisso do médico com a excelência do poder da Medicina. Na terminalidade da vida, há uma curva de aprendizado sobre o conceito de paliação que vem se integrando ao poder da Medicina. A beira do leito é  sala de aula exemplar!

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