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549- Bioética intercessora entre o poder da Medicina e a terminalidade da vida (parte 2)

O tema central deste artigo em espelho com a reunião é a intimidade da finitude da vida. A sobrevida que não perdura é tópico de crescente interesse da Medicina contemporânea, reafirmação que  imortalidade só existe no pensamento… e na Academia Brasileira de Letras. As palavras-chaves são poder da Medicina, conduta clínica emitida como um bem universal, recepção como um mal pessoal e não consentimento do paciente. Interessado no tema que toca no fechamento das janelas de oportunidades de fato terapêuticas, estava no lugar certo e na hora certa!

Para evitar que bata um desinteresse pela continuidade da leitura, em função da habitual refratariedade do médico em falar e ouvir sobre a morte, apresso-me a fazer uma observação preliminar: a morte digna do seu paciente, inevitável pela Medicina, não deixa de caber no espectro simbólico do sucesso profissional. Há séculos, o médico substituiu os deuses. Por ofício, não devemos nem estranhar o que for humano, nem  rejeitar interpretações que só puderam ser feitas pelo ângulo do desumano. É interessante como não vemos porque ficar repetindo todos nós nascemos- quem sabe porque não foi da nossa vontade– e  ficamos apreensivos com todos nós morremos! – talvez porque sentimos ter algum poder sobre a morte.

Acreditem! No decorrer da apresentação do caso, uma face (des)humana de manipulação egocêntrica do outro vagava entre as circunstâncias conflituosas. Lembrava que nossos fantasmas é que são imortais como o inconsciente coletivo atesta. O deslocamento oscilava entre um médico compassivo – minha missão-sua vida! e um paciente decidido ­- minha vida/sua missão-. Pendular, hipnotizante!

A racionalidade do poder da Medicina estava transmutada em crueldade. A essência assistencial rejeitada pelo desejo leigo. Urgia encontrar um entendimento entre a recomendação validada por um conjunto de mentes científicas e não científicas – manutenção de hidratação- e a disposição de única mente válida por si – negativa para receber água açucarada na veia. Qualquer convicção sobre superioridade estava firmemente fincada … sobre areia movediça. Impressionou-me o desconforto de uma solidão a dois. Momentos de altíssimo estresse emocional!

A homenagem do dia conferia superioridade de argumentação à Declaração Universal sobre Bioética e Direitos por meio do artigo 6º: Qualquer intervenção médica de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada. Fazia subentender a possibilidade de responsabilização civil do médico por danos morais e até materiais em caso de desobediência ao consentimento  livre, esclarecido, renovável e revogável.

Então, não fica indevido supor certa predisposição para hierarquizar o direito do paciente de fazer escolhas segundo valores e objetivos e se responsabilizar pelas mesmas. A autodeterminação se materializa no consentimento livre e esclarecido como um direito de personalidade e integra a concepção de dignidade da pessoa humana. Objeções do paciente são ainda sentidas por muitos médicos como “… propus-me a trocar a lâmpada, mas tiraram a escada e fiquei pendurado com a nova lâmpada na mão… no escuro e receoso de estar cometendo uma negligência…  ”.

Embates entre eu prescrevo um suporte vital-você não prescreve são de alta densidade ética, moral e legal.  A parte eu prescrevo arma-se  pela responsabilidade profissional  e mira na prudência e no zelo em conformidade com a moralidade do “enquanto há vida”. A parte você não prescreve instrumentaliza-se pela determinação de proceder a suas próprias escolhas.

O caso destacava a alegação do paciente de  indignidade na manutenção artificial da sua vida por heteronomia.  Após a morte, que Caronte, o barqueiro do Hades conduzisse o corpo inerte pelas águas do Aqueronte que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos; enquanto vivo, o sujeito da dignidade é quem deve remar na corredeira. Coragem!

Discutia-se uma situação trágica num ambiente refrigerado e tranquilo, o conforto abrandando mas não eliminando o desconfortável do emocional captado da apresentação precisa sobre a trajetória do caso e alinhavada com didática. O distanciamento das tensões da beira do leito permite climatizar as reuniões clínicas com lucidez, discernimento e serenidade e afrouxar as amarras convencionais do medo, do preconceito e das moralidades presentes na beira do leito.

Todos presentes- mesa e plateia- se sentiam parte e procuravam, a sua maneira, enxergar um paciente  que havia sido submetido a um período de tratamento que refreou a evolução até o possível pelo limite da Medicina. Sobreveio, então a condição de terminalidade da vida, com a terrível comprovação que médicos podem ser otimistas sobre resultados próximos, nunca profetas de um prognóstico mais longínquo.

Dentro da polissemia do termo terminalidade da vida, nos propusemos a dar um salto mental para aquela beira do leito e nos colocar perto do paciente consciente, sensível e que insistia em  colar um rótulo de imprudência numa prescrição de suporte à vida que todo médico faria na circunstância. Ao mesmo tempo, o paciente isentava o não fazer do médico da prática de negligência. Assumia e provocava um flash: hierarquia e dominação cabem na beira do leito contemporânea?  Instigava à questão: o bandoleiro Procusto já não teve alta… sem retorno? Haveria espaço para um “leito de ferro” numa medida previamente padronizada para cortar ou esticar medidas do paciente?

O Alô Bioética! iluminou motivações de cada parte, gerou hipóteses de condução, selecionou meios apreciadores, encontrou evidências para a seleção de valores aplicáveis e alinhavou transposições para o ecossistema da beira do leito. Qualquer analogia a normas da pesquisa clínica não é mera coincidência!

Aprendi de uma prolongada atuação no CREMESP que opiniões em torno de confrontações éticas, morais e legais  no ecossistema da beira do leito devem procurar algum sustentáculo no Código de Ética Médica vigente. Aplicando, observei que as questões envolviam, no mínimo, o contido no seu Art. 24: É vedado ao médico deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo. Tratava-se, pois, do até quando Não é Não!

O Não do paciente representa a  afirmação (paradoxal, não?) que ele é um agente de si mesmo. O  direito de emitir uma voz  e  fazer acender a luz vermelha do semáforo organizador da movimentação do poder da Medicina (ativação por voz…). Registre-se que no Brasil até 1953, a ética médica brasileira não dava voz ativa para o paciente: Artigo 3º do Código de Deontologia Médica em vigor desde 1945 – É dever do médico… procurar tolerar os caprichos e as fraquezas do doente que não se oponham às exigências do tratamento, nem possam agravar a afecção. Já o Código de Ética da Associação Médica Brasileira(1953-1965), o Código de Ética Médica (1965-1984) e o Código Brasileiro de Deontologia Médica (1984-1988 )trouxeram uma sinalização para o direito do paciente de se manifestar na tomada de decisão: Não é permitido ao médico exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de resolver sobre sua pessoa e seu bem estar. O consentimento pelo paciente foi introduzido no Código de Ética Médica de 1988 – é um jovem de 30 anos de idade!

Não dar consentimento com…sentimento ao recomendado pelo médico é maneira de o paciente se empoderar em meio a um habitual desnível de saber-poder. A negativa, pois, é salvaguarda para a bilateralidade, ou seja para que a aplicação indesejada não seja forçada num sentido unilateral. No curto período de tempo que tem para viver,  o paciente dito terminal costuma se ver mais livre da influência do instinto natural de preservação da vida, facilitando modelar a dependência a condutas médicas ao seu entendimento de dignidade humana. Causa surpresas!

A beira do leito trem fantasma – uma surpresa, um susto a cada curva- não acontece apenas pela evolução clínica, ela ocorre, também, quando a pretensão do médico pelo bem é interpretada pelo paciente como uma forma de violência interpessoal. Desenvolve-se um sentido de ameaça física e psíquica que causa desapontamento no médico que não pratica nenhuma atitude antiética. É exemplo das interpretações leigas de erro profissional. Surpreende, sem dúvida, especialmente para o noviciado profissional na linha de frente. Mas, pensando bem, o Não do paciente não é sagrado? E, justamente por ser sagrado admite o envolvimento em mistérios! A Bioética ajuda a decifrar!

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