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535- Mídia social na conexão médico-paciente, aproximando proteção, afastando embaraço (Parte 1)

Há várias formas de se enxergar o profissional da saúde. Habitualmente, elas incluem a sensação de acolhimento e o desejo por segurança. Em termos de manejo de dados e de fatos na área da Saúde, acolhimento conjuga-se com transparência, um valor diretamente proporcional ao poder e segurança alinha-se com privacidade, um valor inversamente proporcional ao poder.

Voltemos aos anos 80 do século XX. A mãe preocupada com a febre da filha aguarda as 2 horas da tarde para telefonar para o pediatra de confiança, hora em que a secretária chega, até já deixara uma mensagem na secretária eletrônica. Após as consultas, às 7 horas da noite o pediatra retorna a ligação, sem nenhum comprometimento da fidelidade ao profissional, pelo contrário, a mãe agradece a atenção e pede desculpas pelo incômodo. Ano de 2018, aquela filha, hoje mãe é avisada pela escola que o filho está febril e o leva para casa. Imediatamente, manda uma mensagem por WhatsApp para o pediatra e em pouco tempo inicia as orientações assim recebidas. É um novo pediatra, o anterior foi substituído porque  demorava a responder as mensagens, ou seja foi vítima de um julgamento moralizante de desatenção, o aqui e agora da modernidade líquida conforme Zygmunt Bauman (1925-1017). O Sempre alerta! do escotismo migrou para a beira do leito numa forma de plantão à distância permanente. A criança de 8 anos melhora e logo volta a postar videos no Youtube, ele é um aprendiz de Youtuber e convida todos para se inscrever e dar um like.

Um paciente muito conhecido da população é internado com quadro grave documentado por imagens de alta tecnologia. Um médico presente no local do atendimento obtém as imagens e envia via WhatsApp para um grupo de colegas, curiosidade travestida de interesse científico. Há grande repercussão nas mídias tradicionais e o médico sofre sansões pesadas pela direção do hospital.

Um idoso será submetido a uma cirurgia de risco. Familiares, amigos, colegas preocupados com a evolução formam um grupo de WhatsApp transoperatório e solicitam ao médico cirurgião responsável pelo caso para integrar o grupo. Ele se recusa, mas o clínico amigo da família e que fez o diagnóstico se junta ao grupo e durante os 10 dias de internação informa e esclarece. O paciente tem alta e o grupo se desfaz.

Recentemente, eu esqueci o celular em casa e assim que cheguei no InCor acionei o motoboy para buscá-lo, me sentia profissionalmente nu e quando recebi, a primeira providência foi verificar se havia alguma mensagem de paciente. Há 50 anos, quando me formei, nem o bip existia.

Prazer, mídia social às suas ordens na beira do leito contemporâneo. Se alguém ainda for contra, sinto muito, é irreversível. Quem pode pensar em relação médico-paciente atual isenta de articulações com mídias sociais, o médico na palma da mão do paciente 24 horas por dia, 7 dias por semana, nesta época de pós-modernidade em que vivemos?

Estamos aqui porque o significado do termo mídia social sofreu na beira do leito uma forte associação  com a ética profissional. Estabeleceu-se um confronto entre a tradição e a inovação que requer uma plataforma de legitimação, uma busca por molduras que honrem a tradição da Medicina. Ficou claro que perspectivas de abusos não devem desautorizar o uso, emprestando da Matemática que o limite da soma de proteção dos dados é a soma dos vários limites intervenientes.

Podemos relacionar 6 pontos chaves contemporâneos sobre a proteção de dados pelo uso de mídias sociais na beira do leito, com ênfase em aplicativo multiplataforma de  mensagens instantâneas, chamadas de voz, envio de imagens e documentos em pdf  para smartphones  por meio de uma conexão com a internet, como o WhatsApp:

  1. Grau de cibersegurança, que os especialistas em informática ligados à Medicina precisam constantemente esclarecer aos profissionais de saúde;
  2. Respeito ao sigilo profissional pela restrição de interlocutores – próprio paciente e profissionais a ele  sujeitos;
  3. Evitação de identificação do paciente em troca de mensagens a terceiros justificada por interesse na saúde do paciente;
  4. Consentimento formal do paciente ou responsável indicado ou legal, entendendo-se que uma chamada de iniciativa do paciente corresponde a um consentimento tácito;
  5. Juízo do profissional da saúde sobre a seleção de dados a serem veiculados, em nome da privacidade e do controle no uso, mesmo quando solicitados pelo próprio paciente;
  6. Avaliação permanente do mundo real “eletrônico” do ecossistema da beira do leito, idealmente com a participação da Bioética a respeito de expansões e limitações do uso de mídias sociais.

O psicanalista Rollo May (1909-1994) nos ensinou que qualquer expressão de criatividade ocorre num ato de encontro. Por isso, a coragem criativa para eventuais mudanças de uso de formas e de símbolos no campo da comunicação interpessoal deve ser compreendida como tendo por centro um encontro e que todo encontro e reencontro convivem com limites (proibições) que suscitam contenções e expansões. A proteção de dados pessoais transita neste espaço.

Neste contexto, pode-se dizer que formas de comunicação como encontros entre o médico e o paciente acarretam tensões entre expansões da vontade profissional de acolhimento das necessidades do paciente e limitações determinadas pela ética, pela moral e pelo direito. Expansões e limitações significam atendimento a expectativas e frustrações às mesmas, ou seja, exigem uma plasticidade de comunicação interpessoal em torno da conjugação entre serventia empatia e segurança.

Do mundo real recente da beira do leito, partiram avisos sobre a necessidade de regular o uso inédito de tecnologia da comunicação com acelerada aceitação nomeada como mídias sociais.

A conexão médico-paciente apoiada no presencial, no telefone, e até mesmo no e.mail, sofreu os efeitos do glamour das mídias sociais cujas matérias-primas são o imediatismo de recurso, a presteza de interação, a eliminação de etiquetas de educação na interlocução. Incidentalmente, internalizou um desafio à fidelidade de cliente, o não uso pelo médico como desvantagem profissional. Mas, do lado profissional da saúde, assustou em relação à capacidade de documentação, originando uma ambivalência entre precisão da informação e prova ipsis literis de eventual equívoco de orientação, assim, substituindo a palavra contra palavra do contato por telefone numa subsequente análise ética e legal da comunicação. O conteúdo funciona como uma extensão do prontuário do paciente- quem sabe um dia as palavras originais do médico terão facilidade de agregação ao prontuário eletrônico, o efeito da tal nuvem armazenadora e ameaçadora!

O médico sentiu que estava diante de um embaraço ético pois logo foi levado a perceber o lado facilitador. Assim, o uso das mídias sociais criou um desafio à prática profissional normatizada e incrustada da educação médica tradicional, plena de barreiras em nome da seriedade profissional para acenos de ousadia em ausência de sustentação científica e determinações colegiadas de classe. É da prática médica, como se sabe, a anamnese, o exame físico, os exames ditos complementares e as orientações individualizadas e validadas pela Medicina globalizada, muito embora sejam trabalhados pelo médico, constituem propriedades do paciente – prontuário do paciente- e, assim, funcionam como “empréstimos” da posse implícito num ambiente de respeito à privacidade. Os jovens médicos reagiram mais ousadamente e tornaram-se locomotivas pelo costume de uso, cientes que, como um escritor famosos inglês já disse: a tradição é um guia, não um carcereiro.

Uma  das inquietudes foi – e está sendo- como cuidar de assimetrias entre desejos de emitir e de receber. O desassossego profissional sobre o que escolher fazer do modo consciente passa pelo tradicional compromisso do médico com a seleção e a circunscrição de um quantum satis de linguagem informativa, orientadora e aconselhadora que corresponda a uma comunicação de fato essencial e adstrita ao médico e ao paciente, eventualmente a certos circunstantes, e onde qualquer sentido de “vazamento” a terceiros é moralmente rejeitável, está no DNA do número do CRM concedido pela sociedade. Ao mesmo, observa-se um certo relaxamento na sociedade, um fascínio mediante estímulos, acerca da intimidade pessoal que tende a desdizer o ditado popular que falar é prata, calar vale ouro. Destaque-se, todavia,  que o cuidado da preservação do sigilo profissional pelo médico não é uma adoração do passado, é um compromisso moral com a essência da imortalidade do Juramento de Hipócrates: “… guardarei silêncio como um segredo religioso…”, que se pretende uma vacina contra o vírus social da indiscrição, altamente contagioso, tendo como vetor meios de comunicação.

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