Imagine, bioamigo, o quanto me satisfaz poder apontar a pintura The Doctor (1891) do inglês Sir Samuel Luke Fildes (1843-1927) como imagem-símbolo da Bioética da Beira do leito. Entendo que ela representa o solidário – e solitário- comprometimento do médico com o paciente, pessoa a pessoa, em ausência de instrumental, e, ao mesmo tempo, destaca tanto a incerteza que ronda a Medicina como a angústia da expectativa familiar. Muito humano. Porém, o ponto negativo é que a cena dá a entender que se trata de atitude médica nada resolutiva.
Desde a época do quadro, a Medicina desenvolveu-se pelo avanço da tecnociência e se direcionou para a resolutividade. O movimento inverteu o então desequilíbrio da balança com o humanismo, este é que agora se afasta da beira do leito pelo menor peso considerado. Foi preciso criar uma estrutura de Humanização para buscar o reequilíbrio. Um trabalho de formiguinha no formigueiro da beira do leito, onde qualquer sensação de calmaria suscita a dúvida sobre se algo não estaria sendo descurado.
Se filósofos como Friedrich Wilhelm Nietzsch (1844-1900) entendiam que desejos são causas da parte indigna da humanidade, o desejado da Medicina está em extremo contrário. O inconformismo com o niilismo energizou a procura de soluções para a Saúde por meio da ciência (útil, eficaz e segura) e da tecnologia (imagens fidedignas, imediatismo de informação e comunicação esclarecedora), em meio a um presumível quantum satis de atitude humana.
A História registra que nas primeiras décadas do século XX predominou um individualismo criativo com o desenvolvimento de métodos associados a seus inventores e de reconhecimentos de doenças homenageados com designações eponímicas. Mais recentemente, o trabalho coletivo predomina na propulsão do progresso da Medicina. E desta forma mistura-se com a aplicação globalizada.
Ponto essencial da assistência médica leito atual é que este coletivo produtivo de tecnociência reproduz-se na beira do leito com certa impessoalidade que abafa a individualização do médico e do paciente- por exemplo, a heteronomia das diretrizes clínicas. Em decorrência, a conexão humana tende a ficar num segundo plano. De fato, a acentuação do sentido de rebanho para doentes da mesma doença pode vir a comprometer o olhar mais individualizado para a pessoa do paciente. Não se trata da sua inexistência, mas da grandeza da atenção. Tudo se passa como um atendimento à “pessoa jurídica” constituída por portar uma determinada doença, menos à “pessoa física” do portador. A possibilidade exige alertas, especialmente ao médico jovem impregnado do natural anseio do noviciado por expansão prioritária dos conhecimentos e habilidades.
A postura de concentração bem ao lado do paciente como vista no The Doctor, o tempo qualitativo (não mensurável pelo relógio) dispendido, transferiu-se para o conjunto de recursos da tecnociência. A proximidade mentalizada pelo médico contemporâneo é mais com as necessidades de conhecimento e de habilidades, ipso factu, decorre o distanciamento “imperioso” do paciente humano “destruído” em sua saúde, pela pretensão de evitar qualquer fator de distanciamento do acervo de métodos diagnósticos, terapêuticos e preventivos, preocupação com a forma de responsabilidade assumida com o paciente-receptor da tecnociência “reconstrutora” da saúde.
O equilíbrio ciência-humanismo não necessariamente vem com a maturidade profissional, o que significa que o exemplo nem sempre está disponível para o jovem médico, aquele que mais representa a figura do martelo que enxerga prego a ser martelado do mesmo jeito em tudo aparentemente igual a sua frente.
Mas, o indivíduo é historicamente a fonte de protesto, o guardião da moral, o exigente da eticidade e da legalidade. Por caminhos tortuosos, é bem verdade, em que, inclusive, não faltaram meandros de repúdio a violações de direitos humanos, floresceu o individualismo sobre o coletivo na figura de um pedágio no caminho da prudência na tomada de decisão denominado de consentimento pelo paciente. Um momento de inversão do protagonismo, um direito do paciente ligado à liberdade de expressão e ao dever do médico de prestar esclarecimentos técnicos ao leigo mediante eficiente comunicação.
O The Doctor não contém nenhum traço expressando o consentimento, simplesmente, porque, aparentemente, não havia sobre que método beneficente consentir. O “Doctor” contemporâneo precisa se avizinhar do paciente numa distância análoga a vista no quadro para exercer a obrigação da obtenção do consentimento pelo paciente para aplicação do recomendável e aplicável.
Idealmente, com o mesmo sentido compassivo representado pelo The Doctor, porém sempre preparado, na medida de cada um, para fazer ajustes solicitados pelo paciente que possam ter anuência da consciência profissional à diversidade e suscitem flexibilizações em eventuais arroubos de narcisismo, cientificismo e tecnicismo.
A Bioética da Beira do leito contribui para o reconhecimento da significância da voz ativa do paciente, inclusive – e especialmente- aquela que reverbera na mente do médico mesmo não pronunciada pelo paciente impossibilitado, imperativo componente do profissionalismo desejável de nossa época, pincel e paleta a viabilizar sucessivas “pinturas” atualizadas de The Doctor na beira do leito contemporânea com idêntico sentido de acolhimento ao paciente.
Reproduzindo Aristóteles (384ac-322ac): O objetivo da arte não é representar o exterior das coisas, mas o significado interno. Sir Fildes cumpriu e, por isso, a sua pintura é tão imortal quanto Hipócrates, anamnese e exame físico em tempos de necessidade de alertas sobre a natureza humana indissociável do paciente ante tão maravilhosas quanto assustadoras perspectivas de crescente razoabilidade (altamente) tecnológica. Robôs, sejam bem-vindos à beira do leito, mas não queiram posar de médico na beira do leito do paciente para um futuro Sir Fildes artificialmente inteligente.