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522- Exatamente mais humano ou humanamente mais exato?

Medicina nunca foi uma ciência exata. É, contudo, um velho e almejado direcionamento de progresso. Salpicos aqui e ali, a pretensão incrustada continua existindo sem poder sustentar obrigação de resultado. Não se chegou a uma situação de firmeza profissional como quem resolve um teorema ou faz uma conta de multiplicação, mas, cresceram as chances de se atingir a resolução ansiada pelo paciente.

Cautela no senso comum ou prudência como uma virtude, um fundamento maior da ética médica, é instrumento de harmonização da palavra do médico à Medicina que “traduz” para o paciente. O exercício do compromisso profissional com a comunicação veraz demanda a prática da porção arte da aplicação dos métodos diagnósticos, terapêuticos ou preventivos. Por este componente, o médico não pode estar inarticulado com as ciências humanas qual um uni funcional técnico em Medicina.

Na Medicina contemporânea progressivamente mais útil, eficaz, reparadora e preventiva, contudo, impossibilitada de evitar graus distintos de insucessos nas infinitas circunstâncias clínicas, o médico se vê com necessidade de dialogar o alcance da ciência com o paciente segundo um pensamento aplicado em ciências exatas. Ele desenvolve um raciocínio sobre o prognóstico que virá invariavelmente imerso em números. De certa forma, o médico expõe o paciente a uma consideração estatística de prognóstico. Nesta consideração “desumana” mas realista que somos sempre estatísticas em vários contextos, vale dizer, o médico anuncia ao paciente que a conduta aplicável contém um número que representa um percentual de chances de insucesso, total ou parcial. Delineiam-se  subgrupos  de probabilidades. Paradoxalmente, nada com exatidão sobre o que acontecerá, mas utilizando ciência exata. Desequilíbrios com o humanismo são inevitáveis.

Arte está ligada a encontro e, portanto, a suas expansões e limitações. A individualização alertada pela máxima “há doentes, não doenças” faz com que cada médico tenha que desenvolver uma sensibilidade para captação e emissão da comunicação sobre “o melhor não garante sucesso”.  Observa-se uma gama de calibragens do ênfase entre os extremos de graus máximos de verbalização de otimismo -“o sucesso no seu caso é indubitável”- e de pessimismo  “terrorista”.

A medida resultante está relacionada com a maturidade profissional e é influenciada por circunstâncias clínicas e do atendimento. Evidentemente, o paciente deseja receber boas previsões – precisa mesmo, o efeito placebo atesta-, e o médico não pode expandir além dos limites prudentes do conhecimento. O desafio é calidoscópico, cada novo caso promove uma mexidinha que faz mudar a expressão comunicativa.

O pedágio maior moderno do consentimento pelo paciente para a tomada de decisão trouxe maior franqueza do médico no falar sobre adversidades para o paciente. É contexto que, inclusive, envolve os enigmáticos meandros da  Medicina defensiva com seus objetivos mais voltados para se precaver contra uma acusação de “não fui informado”, do que para qualificar as informações sobre a conduta recomendada. Em certas especialidades e condições, uma exposição exclusiva de “sucesso garantido” é preferida pelo médico, que, sabendo que o paciente não desconhece que imprevisibilidades existem, privilegia o apoio ao momento do mesmo e não teme lidar, eventualmente, com explicações sobre a ocorrência de insucessos. Em outras situações, o médico está mais voltado para a sua imagem profissional e torna-se uma bula falante, aliás, muitas vezes assustadora, pois equaliza o (não)benefício de fazer o que é preciso fazer e deixar evoluir a história natural da enfermidade.

O tema é altamente propício para treinamento em Oficinas de Bioética e exigente de uma abordagem transdisciplinar. Até mesmo, porque a inteligência cognitiva, a computação avançada, a Medicina de precisão estão chegando com uma supervalorização das ciências exatas – domínio de algoritmos, por exemplo. Os ineditismos da  conexão Medicina-médico-paciente demandarão a prática das ciências humanas. A Bioética tem a capacidade de contribuir para os ajustes necessários entre inovação e clássico, ciência e cultura, fronteiras líquidas e fronteiras sólidas.

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