Espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais belo (a) do que eu? Esta preocupação eternizada em Contos Maravilhosos (Branca de Neve os sete anões dos irmãos Grimm), migrou para o cotidiano da captação de selfies pelo uso de smartphones, como Selfie meu, selfie, tenho que parecer mais belo (a). O smartphone como espelho mágico que tudo capta e registra, quer para o bem, quer para o mal.
A aspiração tem provocado impulsos humanos por correção dos “erros constitucionais” e, assim, reforça o já congestionado contingente de “problemas” da vida moderna que embora não sejam disfunções ou incapacidades, têm passado a representar patologias médicas.
A ansiedade decorrente acentua a surpreendente situação de ter havido redução das taxas de mortalidade e aumento da expectativa de vida e, ao mesmo tempo, elevação do número de avaliações de não-saúde pela sociedade em geral. Insere-se numa via final de procura por medicalização da vida. Certamente, mais ilhas no arquipélago médico sob várias influências da sociedade contemporânea – mídia, redes sociais-, provocando olhares enviesados sobre os objetivos da Medicina e, em decorrência, incessantes desafios à consciência profissional do médico ético.
Refiro-me, especificamente, neste momento, ao denominado Snapchat Dysforia. É a denominação estrangeira de uma insatisfação com o próprio visual percebido num selfie e que motiva a procura de um cirurgião plástico e/ou de um dermatologista para solicitar imediata “correção” estética https://jamanetwork.com/journals/jamafacialplasticsurgery/article-abstract/2688763.
É verdadeira procura por um “photoshop” presencial e reparador das imperfeições conjecturadas. É produto de excessiva idealização da própria imagem -supervalorização de padrões de beleza. É reflexo de insegurança e baixa estima e pode fazer parte do espectro obsessivo-compulsivo. Portanto, acaba por vir a merecer atenção médica sobre as origens da sensação de disforia.
Considerando que a conceituação contemporânea de doença inclui uma disfunção explicável por uma natureza psicológica que causa sofrimento e que está além do controle consciente direto da pessoa, a Bioética da Beira do leito considera que as peculiaridades do Snapchat Dysphoria fornecem excelentes subsídios para reflexões sobre a tríade principialista beneficência- não maleficência-autonomia.
De fato, a utilidade das eventuais medidas “reparadoras” em prol de simetrias nasais e faciais para o paciente em questão com riscos relativamente baixos de adversidades intercorrentes associadas aos métodos utilizados está intimamente alinhada com o desejo por melhor aceitação social, a preferência por um padrão “em manada”, o objetivo de melhora da autoestima, e o valor entendido como qualidade de vida.
Por outro lado, é justificável que o médico hierarquize o desejo estético do paciente como “sintoma”. Assim sendo, ele pode concluir pela recomendação de apoio psicológico e farmacológico (inibidor da reutilização da serotonina), a procura pela aceitação da identidade “natural”, não o uso de um bisturi modelador de uma “artificialidade”. O manejo desta contraposição do predomínio do interesse pelo “lado de fora” e o “lado de dentro” da cabeça do paciente tem chances de se constituir em conflitos da relação médico-paciente no âmbito da interpretação do binômio beneficência-autonomia que requerem assessoria da Bioética.