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511- Bioética e distorções

Há o hipocondríaco, aquele que tem preocupação ou receio persistentes com a possibilidade de estar apresentando uma doença e que costuma supervalorizar sintomas banais como indicadores, inclusive, de situação grave e fatal. Há o portador da síndrome de Munchausen, aquele que falsifica de alguma forma  a expressão clínica pretendendo atenção médica em busca de tratamentos, muitos deles colecionadores de desnecessárias cicatrizes cirúrgicas. Há o que se tornou dependente do uso de tranquilizante para dormir, um dia receitado para satisfazer um momento do paciente… ou do médico…

É de se notar que estas pessoas inserem-se equivocadamente na jurisdição da Medicina. Se considerarmos o conceito de saúde como a capacidade de se adaptar e de autogestão em face de desafios sociais, físicos e emocionais, diríamos que elas procuram saúde por uma vigorosa dependência à Medicina, um alerta que, embora o referido conceito não mencione o termo doença, fica subentendido que a preocupação com (não) doença cabe no processo de adaptação. As circunstâncias citadas ilustram como fronteiras entre saúde e doença podem ser imprecisas em função da avaliação individual sobre o próprio bem-estar.

Assim, a posse de um medicamento guardião, o foco num procedimento reversor ou a garantia do sono reparador tornam-se essências de adaptação e de autogestão. Tais pessoas precisam da Medicina, embora não preencham critérios habituais para aplicação de farmacologia e de cirurgia, elas necessitam, evidentemente, de métodos de apoio psicológico. Todavia, os comportamentos reforçam uma forma de poder da Medicina, que apesar de  qualificável como distorcido, admite dimensões mais dissimuladas que podem estar sendo incentivadas por certos interesses incompatíveis com a moralidade.

No dia a dia, o médico se depara com pacientes que não preenchem exatamente os três diagnósticos acima, mas que evidenciam desejos, preferências e objetivos nas consultas que são a eles assemelhados. De fato, há o paciente que não se contenta apenas com a informação de ausência de doença ou de necessidades terapêuticas, o seu alívio e a sua satisfação pessoal exigem receber uma prescrição, por exemplo de uma vitamina sem nenhum critério científico, que possa sustentar sua visão de reforço à saúde e bem-estar – é comparável ao hipocondríaco. Há o paciente que força a aplicação de um procedimento, invasivo por exemplo, está consciente em manipular a tomada de decisão pretendendo certos ganhos secundários internos ou externos – é comparável ao Munchausen.  Há o paciente que não se conforma em passar um dia sem ter um medicamento diário para lhe dar bem-estar, usando-o como um tipo de proteção e passa a depender dele como um amuleto, uma bengala,  envereda no terreno da superstição – é comparável ao dependente em ansiolítico noturno.

A Bioética da Beira do leito preocupa-se com a condução destes casos, em que a prioritária atenção ao princípio da não maleficência conflita com o da autonomia e gera dúvidas sobre decisões sobre responsabilidade com beneficência dada as circunstâncias clínicas. Estas situações de distorção do diagnóstico e da terapêutica em relação ao estado da arte em Medicina guardam vínculos com dificuldades dos médicos de terem certezas – desembocando na Medicina defensiva-, de disporem do tempo necessário para atenção a cada paciente e de trabalharem numa pesada atmosfera de medicalização da vida.

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