Sinopse
LS, masculino, 42 anos, está com insuficiência cardíaca compensada por quatro medicamentos e necessita ser submetido à substituição da valva aórtica, conforme orientação do Dr. PN, seu cardiologista há anos.
Pano de Fundo
A ética e a bioética de mãos dadas, abraçadas pelo doutor.
Personagens
Dr. PN – cardiologista.
LS – portador de insuficiência aórtica reumática, sob cuidados do Dr. PN há 8 anos.
GZ – personificação da bioética.
BP – bioprótese cardíaca, por deferência da prosopopeia.
Preâmbulo
Pedágios bioéticos existem nos caminhos que levam o conhecimento da Medicina e as habilidades do médico à beira do leito.
No trajeto entre o ambulatório até o Centro Cirúrgico, o Dr. PN analisa prós e contras previsíveis, dialoga com LS e ambos estabelecem um compromisso terapêutico. É situação que passa por pedágios bioéticos.
Cena 1: Primeiro pedágio bioético
Dr. PN – LS, você aceita viver com uma prótese dentro do seu coração?
LS – O que desejo, doutor, é voltar a fazer as coisas que fazia e que dão sentido a minha vida.
Dr. PN – Preciso, então, que você me dê seu consentimento e que ele seja livre e que você se sinta esclarecido sobre o que pode acontecer.
LS – Esclarecido sem dúvida, doutor, compreendi as suas explicações.
Dr. PN – E é livre também?
LS -Livre de uma imposição certamente, pois o senhor não está me forçando a fazer ou não fazer o que acha bom para mim, eu não sinto nenhuma coação externa.
Dr. PN -E há alguma interna?
LS – Doutor, se só dependesse de mim, pela minha vontade, eu ficaria só tomando os medicamentos.
Dr. PN – Eu sei. Você sente que eles lhe dão liberdade para ir e vir, tudo parece confortável agora, mas, a experiência com casos iguais ao seu permite saber que isto não vai durar muito tempo, precisamos nos antecipar.
GZ – É o dia a dia. O paciente LS havia recuperado o conforto pelo uso dos medicamentos, mas não é aconselhável depender exclusivamente deles, principalmente porque a doença estava progredindo e logo elas seriam insuficientes. A ampliação da ajuda médica pela realização de um procedimento sobre a causa da doença depende da autodeterminação do paciente para endossar uma recomendação de correção hemodinâmica antevista pela Cardiologia como possibilitador de uma liberdade de vida a longo prazo.
LS – Doutor, estou com medo da operação, algo dentro de mim me faz ficar em dúvida para dizer sim do modo como o senhor espera que eu faça, sei que o senhor fala para o meu bem, mas não sei não…
Dr. PN – Eu entendo, mas você se sentirá melhor se reconhecer que o medo faz parte da insegurança por que há riscos, o procedimento lhe traz uma ameaça de mais sofrimento, que pode piorar a situação, é normal se sentir assim. Se você procurar controlar o medo, ganhará coragem para dizer um sim.
GZ – LS estava refém da sua valvopatia. A reconquista da liberdade restringida pela insuficiência cardíaca depende apenas dele, aceitar o resgate da qualidade de vida pela inserção de uma prótese no coração. LS não está privado da sua liberdade civil – pode fazer o que deseja dentro de certos limites- e a sua dignidade não está em perigo – pode dizer não à proposta médica-, mas ele não está dispensado do compromisso com a própria vida que impunha dizer um sim. LS pode exercer seu direito à autonomia e não aceitar a recomendação do Dr. PN, que não está nem exposta nem sentida sob forma autoritária, nada há sugerindo abusos por assimetria de poder, embora não se possa desconsiderar um grau de assimetria de informação técnica, principalmente sobre o significado de exaustão dos mecanismos adaptativos e limites da farmacoterapia. LS está intimamente pressionado, ele se sente frustrado e, de certo modo, violentado tanto pela doença quanto pelo tratamento representado pela intervenção cirúrgica em perspectiva. O consentimento para a realização do procedimento depende de fatores de natureza interna do paciente, declarar um sim é muito mais para si próprio do que para o Dr. PN. Tenho visto que muitas incompreensões de médicos sobre atitudes de contraposição de pacientes são causadas pela divergência entre a visão profissional de uma missão de encontrar e combater, não importa qual seja o calibre das armas necessárias, e o desejo humano que alívios devem ocorrer com a maior leveza possível. Os medicamentos representam para LS uma carga leve, já a operação é arma de grosso calibre. O Dr. PN sabe que não há razão para censurar a indecisão de LS e, muito menos, fazer análises sobre maturidade emocional. O direito de LS para se harmonizar, ou não, com a beneficência proposta pelo Dr. PN não pode ser exercida independentemente do seu caráter, personalidade e temperamento. O consentimento livre e esclarecido denota por sua dupla adjetivação que esclarecido faz a interface com beneficência/não maleficência, e livre passa pela análise conjuntiva entre “agressões” provocadas pela ciência médica e “dramas” vivenciados na mente do paciente. Já se chamou de arte médica o exercício da adaptação do ideal ao possível, a capacidade de exercer papel conciliador, mas no caso, o paciente consentir ou não consentir significa diferenças essenciais sobre qualidade de vida e sobrevida. Assim, experiente da beira do leito, o Dr. PN aguarda a resposta, situação que é freqüente na situação de conflito entre lógica e emoção. Já foi o tempo, felizmente, que em circunstâncias análogas, o paciente não tinha direito de participar ativamente do processo de tomada de decisão sobre a própria vida e, por isso, se comportava como o boneco que diz sim pela boca do ventríloquo.
LS – Doutor, o que o senhor decidir, está bom para mim.
Dr. PN -Entendo, então, que você me dá a autorização para as providências de cirurgia.
LS- É isso, doutor, confio no senhor, o senhor não vai me deixar morrer na operação.
Dr. PN- Claro que não! Vou registrar o consentimento no seu prontuário.
GZ – LS sente-se pequeno e frágil, o consentimento está sendo algo relativo porque não se livrara dos pensamentos ambíguos. Já para o Dr. PN, o consentimento soa como absoluto. A tensão do arco alivia com o disparo da flecha. Mas. aqui entre nós, será que a concordância havia sido simples aquiescência ou real escolha? Ficou convencionado que paternalismo expressa atitude antibioética do médico na beira do leito. Mas, não estaria havendo um reducionismo? O rígido acatamento do valor social negativo do paternalismo conflita com a realidade das manobras de flexibilização que constituem o dia a dia do médico compromissado com o paciente e com a Medicina. Abertura e tolerância são úteis para harmonizar uma relação médico (por mais autonomista que ele seja) -paciente (com dificuldades de escolha por mais esclarecido que esteja). Assim, o paternalismo fraco, aquele que insiste sem proibir e sem coagir dentro dos limites do bom senso, é aceitável – e desejável. A postura de LS foi de “terceirizar” o consentimento, transferindo-o para o Dr. PN, ou seja, uma real devolução sem nenhuma adição para quem, justamente, fizera a pergunta-pedágio sensível ao seu direito à autodeterminação. Será que este posicionamento é efetivo exercício da autonomia, na medida em que LS não foi coagido pelo Dr. PN a responder afirmativamente? Ou ele será a atávica tendência de se buscar proteção – a chamada volta para o útero- em momentos cruéis? O quanto o Dr. PN, na figura do personal-doctor de LS, misto de honesto nos esclarecimentos e eficiente para devolver a boa qualidade de vida, deve ser visto como fator de predição da verbalização de um sim por LS? A probabilidade é significativa, com certeza, mas, sabe-se, por outro lado, que muitos casos precisam de um estímulo adicional para a tomada de uma decisão livre: uma segunda opinião por exemplo. Destaque-se que uma outra opinião costuma ser emitida por alguém que o paciente consulta pela primeira- e única- vez.
LS – Doutor, o senhor me disse que tem mais de um tipo de prótese para colocar no lugar da válvula do coração, mas que só posso colocar a que é de boi.
Dr. PN -É verdade. Você precisa receber uma prótese biológica e lhe justifico: em primeiro lugar porque uma plástica, consertar a sua valva não é recomendada no seu caso; depois porque o outro tipo de prótese, a metálica, exigirá tomar um remédio para afinar o seu sangue, um anticoagulante e você não deve fazer uso dele porque, lembra-se você já foi internado só neste ano duas vezes com hemorragia por úlcera duodenal.
GZ – Esta forma de comunicação do Dr. PN não pressupõe opções de escolha para LS. O Dr. PN presume que a sua opinião sobre vantagens e desvantagens das próteses significa cuidados competentes, obrigação do médico em prol do paciente e que isto basta. Poderia ter sido pelo inconsciente desejo do Dr. PN de não ter que se envolver em negociações em que não teria como abrir mão da sua opinião, até por uma questão de consciência profissional? Ocorre que se o problema de LS está na dificuldade de adesão à ideia de uma operação, fica a dúvida sobre como será que LS reagirá quando houver a necessidade de uma re-operação pelo término da validade da prótese biológica? Assim, LS poderia preferir a opção pela prótese metálica pela menor perspectiva de repetir a emoção daquele momento, vivenciando a escolha pela prótese “pra sempre”. LS poderia entendê-la como menos assustadora, conviver melhor com o risco do uso diário do anticoagulante, cumprir todas as recomendações para evitar seus males gástricos. Por que não?… Ao invés do monólogo do Dr. PN, de cunho paternalista forte, o seguinte e hipotético diálogo poderia ter acontecido, talvez com maior apoio dos autonomistas.
Dr. PN – LS, há dois tipos de prótese para o seu caso. Uma chama-se bioprótese, usa um tecido bovino, e tem grande chance de precisar ser substituída após alguns anos de uso e a outra é a metálica, que com probabilidade de durar para sempre, só que ela implica em ter que tomar um medicamento que o coloca sob risco de sangrar novamente pela úlcera duodenal. Qual delas você prefere?
LS – Eu prefiro arriscar, entendo que vou conviver melhor com a incerteza sobre o sangramento do que com a certeza da reoperação.
GZ Evidentemente, o Dr. PN insistiu com a sua recomendação, mas não obteve êxito. Nesta conjectura de diálogo de acatamento à autonomia, fiel a inibir abusos da autoridade médica, o foco do holofote deslocar-se-ia de LS para o Dr. PN. Agora, nesta hipótese, quem necessita dar ou não dar o consentimento, ter ou não objeção de consciência, é o Dr. PN, uma vez esclarecido sobre a opinião de LS quanto ao que deseja. O Dr. PN estaria esclarecido e livre? O Princípio fundamental VII do Código de Ética Médica vigente dispõe que o médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente. O Dr. PN está eticamente apoiado para aceitar ou recusar a eventual resposta de LS, guiado pelo que entende como boas práticas da beira do leito perante valvopatia. Todavia, o Dr. PN subutilizou seu dever para com o respeito à autonomia de LS e julgou bastante satisfazer-se com o consentimento de LS no plano mais superficial, aquele do sim ou não ao ato operatório. O Dr. PN não se arriscou a orbitar pela contraposição e fazer escalas em concessões sobre fatores mais técnicos. Neste particular, a heteronomia das diretrizes versus a autonomia do médico para as desrespeitar, por solicitação do paciente, é um dos dilemas da beira do leito mais difíceis de serem enfrentados.