A realidade do pensamento do médico cuidando do paciente é uma sucessão de atualizações e projeções. Num determinado atendimento, ele atualiza uma escolha de método beneficente sob critérios e, em decorrência, mentaliza desdobramentos previsíveis, potencialidades tanto do benefício almejado quanto de malefícios intercorrentes evolutivos. Verdade aplicável, nenhuma certeza do efeito, tensão profissional constantemente renovada e mantida em nível impactante. Acompanhar é preciso.
O médico sabe que após aplicar o método terapêutico selecionado, a situação em atendimento não é mais a original, mas, de imediato, ainda não é a pretendida, especialmente no atendimento em caráter eletivo. Diríamos que o objetivo terapêutico (controle da hipertensão arterial sistêmica, por exemplo) estará a caminho, a flecha “terapêutica” atirada avançará com posicionamentos progressivos, quer uma indesejada perda (ausência de efeito) no trajeto por carência da força projetada (persistência dos níveis altos), quer atingindo o alvo, na mosca (normalização da pressão arterial) ou em sua periferia (redução parcial da pressão arterial inicial), vale dizer a verdade do benefício conceitual da flecha “terapêutica” sujeito a com intensidades distintas de efeitos (desde o niilismo até o sucesso maior). O futuro evidentemente traz o resultado, mas no presente pode-se – e o médico deve- pensar nas várias possibilidades tanto as análogas (graus de sucesso) quanto as de sentidos diferentes (insucessos).
Enquanto em progressão, a flecha “terapêutica” reúne duas aparentes contradições que, contudo, são superposições mentalizadas em níveis distintos de realidade (não mais e não ainda rejeitam a condição de antônimos), numa sucessão de atualizações e projeções. Ademais, dependendo da grandeza do efeito em função da gravidade do nível de gravidade da situação clínica, um mesmo nível evolutivo pode ser considerado sucesso (parcial) ou insucesso. Assim, a redução de 200×140 mmHg para 160×100 mmHg é sucesso que alivia as chances de complicações, mas a persistência de 160x100mmHg poderá ser apontada como limite de sucesso da mesma flecha “terapêutica”.
Pode-se ter, ao mesmo tempo, num mesmo paciente, a doença que se estabeleceu e a não-doença que está sendo determinada, ainda oculta, formando uma nova composição, sucessivamente atualizada e projetada daí para a frente, ou seja, uma multiplicidade dinâmica. Há, pois, um desdobramento continuado onde sim (já) e não (ainda) circulam constituindo verdades fluidas, idealmente no rumo do benefício (cura, controle), mas com possibilidades de malefício.
Desta maneira, a convivência da doença, da não doença (processo resolutivo- melhor mas não curado), do benefício e do malefício (efeito adverso) não é incoerente, admite não contradição entre opostos, pois representa transições, a passagem da “flecha terapêutica” por atualizações (observadas) e projeções (imaginadas) determinando a cada momento a apreciação de uma evolutiva situação clínica – não mais a doença original ou sua manifestação, não ainda a eliminação da doença ou sua manifestação, já indícios de modificação, não ainda ou já uma intercorrência-. Exemplo de distintos níveis de realidade que permitem a convivência na mente da ideia de contradição clássica é entrar num recinto totalmente vazio e “vê-lo” mobiliado emitindo reações a diferentes composições supostas.
A transdisciplinaridade entende este conceito como a lógica do terceiro incluído (em oposição à tradicional lógica do terceiro excluído, onde A e não-A são necessariamente contraditórios) que está intimamente ligada à visão de distintos níveis de realidade, ou seja, observamos uma realidade atual que convive na mente com outras em potencial, logo a atualizada e assim por diante.
Estas considerações são úteis na beira do leito, pois, facilitam compreender o processo de consentimento como um caminho atapetado pelo fundamento ético da prudência, sensível a uma abertura para possibilidades de desconhecimentos e imprevisibilidades, bem como suscetível à tolerância a pontos de vista contrários e onde atualidades e potencialidades da doença e da terapêutica ao serem concebidas em superposição, melhor sustentam eventuais ajustes de conduta entre médico e paciente. É a desejável plasticidade embutida no princípio da autonomia que sem desdizer o valor do rigor tecnocientífico reconhece a necessidade de respeito às individualidades biológicas, cognitivas e sentimentais do paciente.
A formação do médico embute a tendência à homogeneização, contudo ela trava uma batalha permanente contra a heterogeneidade do ecossistema da beira do leito. A Bioética é útil para enxergar superposições em aparentes contradições, uma razão de equilíbrio no ecossistema.