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486- Beira do leito pós-moderna e não consentimento

O não consentimento definitivo à recomendação médica como ponto final do processo de tomada de decisão no âmbito da relação médico-paciente contemporânea é mais preocupação ética do médico que comportamento real do paciente. De fato, o autorizado pode até não ser exatamente o script original, mas, o consentimento ocorre majoritariamente na beira do leito.

O não consentimento como manifestação de (não)vontade do paciente causa no médico frustração da expectativa de contar com as chances da Medicina. É da ética, o médico realizar um ordenamento de atitudes visando ao consentimento pelo paciente confiando no esclarecimento e respeitando a liberdade de pensamento. Assim, num percentual variável de ambiente em ambiente, a inquietude do médico pelo máximo de prudência – comprometimento com o futuro-, aciona atitudes de paternalismo fraco ante um não consentimento inicial, expressão do (bom)profissionalismo.

É disposição que mistura simpatia, boa-fé e solidariedade num ato justo que não viola o direito ao princípio da autonomia pelo paciente. Funciona como um “post-script” pretendendo promover a recomposição da compreensão,  um reforço de diálogo esclarecedor para motivar um repensamento que, possa, inclusive,  redimensionar emoções. Cabe o oximoro: O desejável frio (racional médico) calor humano (pelo foco na individualidade do paciente).

A realidade do não consentimento na beira do leito não é um acontecimento inexistente no passado mais longínquo, é que havia menos a consentir, era mais dissimulado, apresentava-se como postura de não sem verbalizações explícitas, a fuga do ambiente de natureza mental, o desparecimento físico que impossibilitava a sequência de procedimentos.

Todavia, o não consentimento era incomum. Autoritarismos fundamentados em cientificismo, razão e progresso dificultavam contra-argumentações do paciente, aliás, escassamente esclarecido pelo médico sobre conhecimentos e pouco detentor de direitos para o exercício de objeções. De certa forma, dominava um não consentimento (do médico) a um eventual não consentimento (do paciente).

Coincidente com a pós-modernidade e sua nova configuração social, fortalecimento do humanismo em meio a um enfraquecimento do cientificismo com foco no dia-a-dia, no decorrer da segunda metade do século XX, o não consentimento tornou-se mais admissível numa plataforma de vigoroso entrelaçamento entre contraditórios representados por individualismo e coletividade, emotividade e racionalidade.

Na relação médico-paciente, de um lado, deu-se a ascensão da conexão via tecnologia (exames de imagem) e o afastamento dos órgãos dos sentidos do médico (inspeção, palpação, percussão, ausculta) da pessoa do paciente, de outro, eclodiram desobrigações leigas com valores científicos com a liberdade de cidadania para novas formatações do estar paciente, tangenciando o imediatismo, o alternativo, a pós-verdade (mais aceitação pela emoção, pelo em que se crê do que por evidências). O significado de paciente descolou-se dos sinônimos tolerante, resignado, eupático.

O caráter manipulador da comunicação médico-paciente em prol da aplicação “a todo custo” deixou de ser referência, objetado pela Ética e pelo Direito. A guinada de re-significação de ser médico e ser paciente coincidiu com a visão pós-moderna das complexidades sócio-culturais exigente de uma articulação com o “aqui e agora”, o “rejuvenescimento” dos valores constantes na humanização dos tempos em que ela era mais importante do que o restrito arsenal tecnocientífico disponível.

Sim e não “transgressores, emocionais, autônomos” ganharam mais personalidade de não se preocuparem em ser “bom paciente” agradando ao médico, ou seja, liberdade de verbalização. Certamente, o não consentimento pode ser enquadrado numa antítese da ostentação da virtude (virtue signalling de James Bartholomew) na beira do leito onde deve predominar a sinceridade.

No cenário em que evidências tecnocientíficas em incessante renovação passaram a dialogar de modo livre com postulados sociais, culturais e metafísicos, portanto subentendendo transdisciplinaridade, uma das missões da Bioética é conscientizar os médicos que direitos atuais do estar paciente, embora possam soar como oposição ao pensamento racional moderno que se aprende na Faculdade como característica do ser médico, não constituem desconfiança ao caráter socorrista da Medicina. O direito ao não consentimento está na ordem do desejo. Cumpridas as atribuições éticas pelo médico, qualquer interpretação de falta de cuidado deve ser atribuída ao paciente para com a sua própria saúde.

Em outras palavras, o sedentarismo mental do paciente na comparação de ideias, pontos de vista, opiniões de tempos atrás transformou-se em movimentos ativos de comparação entre potencial de benefício e possibilidade de danos com independência para emitir um sim ou um não respeitáveis. Em tempos de banalização da dimensão ética da vida, da aplicação do pensamento “É perigoso ser sincero, salvo se você é também idiota” de George Bernard Shaw (1856-1950), o respeito à figura do não consentimento como patrimônio da sinceridade na relação médico-paciente compõe uma contribuição de peso da Bioética.

Desde os seus primórdios, a Bioética alerta que cada novo método ou componente traz modificações na conexão médico-paciente, muitas vezes de modo imperceptível à rotina massacrante. Fazer transparecê-las como inseridas no cenário de níveis distintos de realidade, complexidades e possibilidades de A e anti-A não serem exatamente contraditórios da beira do leito pós-moderna é desafio recorrente, especialmente pela necessidade não infrequente de ter que desafiar o cientificismo sem, evidentemente, desmerecer a ciência. Na verdade, é preciso conduzir a verdade das evidências pelos solavancos das emoções e manter o equilíbrio.

Por mais que se possa construir concepções notáveis de atenção técnica e humana às necessidades de saúde, algum tipo de malabarismo mental para suprir o equilíbrio conflitual (expressão de Michel Maffesoli, nascido em 1944), na hora do “vamos ver”. Como se diz, a teoria a confiar é diferente na prática. A Bioética facilita articulações criativas em busca de  uma perspectiva diferente mais aplicável á circunstância.

Em suma, o respeito ao não consentimento do paciente pelo médico representa tolerância à pluralidade da percepção de vantagens e desvantagens pelo cidadão, então paciente, aliada à noção que o seu número do CRM é propriedade da sociedade a ele outorgada. Qualidades exigentes de movimentos possíveis na relação médico-paciente de conformidade com identidade e autonomia. Alô Bioética!

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