O português é um idioma vivo, muito vivo, cheio de expressões populares, muitas propagadas em prosa e verso, e que, inclusive, compõem-se como verdadeiros dialetos. Lembro-me que na juventude ouvia de professores do Colégio Pedro II que nós alunos estávamos desatentos, longe da sala de aula, sonhando, mais precisamente, que estávamos com a cabeça nas nuvens.
Pois é, cerca de seis décadas depois, nós médicos que de certa forma perdemos o monopólio do conhecimento das ciências da saúde, incentivamos nossos estudantes de Medicina a reduzir a memorização como fazíamos e a usufruir de um bem comum sustentado pelo conceito de computação em nuvem. Trata-se do armazenamento das informações em computadores e servidores compartilhados e interligados por meio da Internet. Estimula-se estar com cabeça numa nuvem.
Destaca-se o saber “firmemente fincado nas nuvens”, um aparente contra senso físico, mas uma imprescindível metáfora da magia da computação. Refere-se tanto à literatura médica atualizada quanto aos dados referentes a prontuário do paciente (que acaba com a letra de médico como herança de um corporativismo obsoleto ligado a uma sabedoria secreta).
A disponibilidade da nuvem de conhecimentos possibilita ao médico ir além do acervo de saberes que detém ao completar a graduação e entrar em contato com uma profusão de informações, facilmente accessíveis quando necessários. Entender quando, como, onde e porque procurar a informação, ou seja manejar este capital epistemológico, passou a ser tão vital para o médico quanto, antigamente, era deter na memória e, na falta orientar-se pelo Magister dixit, ou pessoalmente ou pelo livro de texto, motivo de combate pela Medicina baseada em evidências. Quanta modificação do significado de ser médico em pouco tempo! E uma revolução com vários agentes sob a denominação de Medicina digital está aí nas portas, fazendo prever no curto prazo a migração de métodos do progresso relativamente recente para o museu da Medicina.
Fica mais forte, então, a necessidade do treinamento acerca de competências contemporâneas para lidar com afluxos momentâneos de conhecimentos que não mais ficam proporcionais ao que o médico estudou. A computação em nuvem trouxe nova forma de relembrança ou mesmo de primeiro aprendizado. As habilidades de vai-e-vem e vem-e-vai em busca das fundamentações de condutas requerem disposições além da tradição da Medicina. Nada difícil, mas desafiante. Fico imaginando como seria o constrangimento de William Bart Osler (1849-1919) sentado em frente ao computador lendo uma diretriz clínica sobre um tema de “seu domínio” e, envolvendo-se com questionamentos sobre a sua (excelente) formação e (vivíssima) experiência. Assim, como percebo jovens médicos perplexos, surpreendidos com certas explanações sobre um básico que deveriam dominar. Na sequência, interessados, eles vão à alguma nuvem do conhecimento preencher as lacunas. Funciona como alguém que trabalha numa biblioteca imensa que poucos exemplares leu realmente, mas que sabe sobre as orelhas dos livros e assim se orienta quando instado.
Neste contexto, percebo o jovem médico tendo uma mente bumerangue, que parte questionador da beira do leito, atinge a nuvem e retorna recomendatório. Vivencia-se, pois, uma transformação da identidade do médico. Na verdade, é um processo ininterrupto desde há muito tempo e que agora acelera. À minha formatura, havia uma forte impressão que terminar de cursar a Faculdade de Medicina era um hercúleo ponto final. Hoje, é definitivamente uma vírgula, pelo novo sentido da posse do conhecimento profissional.
Assim, mudanças na noção do valor da propriedade do conhecimento, vale dizer, da efetiva presença na memória, direcionam para o treinamento sobre como lidar com o retorno do bumerangue abastecido na nuvem. Como ensinado pelo Oráculo de Delfos a respeito da ambiguidade, o médico necessita, então, vivenciar a mensagem numa atmosfera de mistura de certezas e incertezas, passar pelo pedágio da prudência em nome da segurança, filtrar pelo princípio da autonomia, seguir adiante com zelo na aplicação do consentido.
O novo continuum entre graduação e após graduação – a expressão contemporânea da vírgula, nem mesmo ponto e vírgula e nunca ponto final- faz surgir, então, uma questão gigante: Se a graduação tornou-se algo qual um passaporte para a pós-graduação sensu lato, onde o feitio do médico será de fato forjado, porque tantos anos de frequência a uma Escola de Medicina que, repito, já está consciente da robustez do carregamento (usando um sentido de computação) na Residência Médica. Não há dúvida que sem o diploma da Residência Médica, o mercado de trabalho do médico fica muito limitado, mesmo estando autorizado legalmente ao exercício profissional pelo porte de um número de CRM. Paradoxalmente, não funcionam tentativas de reverter uma negativa de colocação profissional alegando que tem acesso a nuvens orientadoras. Bagagem virtual tem suas regras de condução.
Há linhas de pensamento que entendem que certo percentual de ensinamentos da graduação nunca será utilizado – nem útil para raciocínios de natureza biológica-, um esforço desnecessário e que, inclusive. muitos deles poderiam ser mais facilmente captados já no exercício profissional e que, mais tempo poderia ser aproveitado para cumprir o ensinamento de Aristóteles (384 ac-322 ac): É fazendo que se aprende a fazer aquilo que se deve aprender a fazer. A visão de internato como a transição entre formação teórica e prática ainda na graduação parece estar sofrendo de miopia e, assim, fazendo o futuro médico “passar batido” para a Residência Médica.
O racional da intenção de alterar a Lei no 3.268/1957 que dispõe sobre os Conselhos de Medicina com a inserção do Exame Nacional de Proficiência em Medicina tem muito a ver com a consistência da luta pela manutenção de uma elevada identidade profissional no contexto da educação médica. Objetiva-se que ela expresse a fase preliminar da aquisição de matérias-primas coerentes com as realidades atuais de uma sala de aula permanente que é a beira do leito até a aposentadoria. Todos clamam pelo profissionalismo de alta performance que contribua para o melhor resultado propiciado pela Medicina atualizada afinado com desejos, preferências, objetivos e valores em jogo.
O termo formado (formatura) deve, assim, ser aposentado, pois sugere uma imagem de algo pronto, quando a solenidade deve representar, emoções à parte, um ponto de referência ético-legal, preparatório de um continuum de aprendizado (pelo fazer). Em tempos do trabalho em equipe, algo como célula-tronco que irá se diferenciar em especialidades e áreas de atuação, apreendendo novos conhecimentos e habilidades e desprendendo o que virou excesso. Em busca das nuvens de bom tempo!