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429- Um valor pedagógico para o não consentimento (Parte 2)

Considerando o reducionismo de conhecimentos e de habilidades num cenário de competência profissional na área da saúde, se por um lado não deixa de haver críticas às exiguidades de ofício nas mãos de um determinado profissional da saúde- superespecialista-, por outro, há vantagens para a utilidade e eficácia da aplicação pela dedicação mais intensa à curva de aprendizado visando a obtenção da excelência. É contribuição para a integralidade do atendimento por meio de recortes de saber interligados, tantos quanto necessários, idealmente, uns mais essenciais, outros mais coadjuvantes.

Como líder da orquestra interdisciplinar na beira do leito, o médico, obrigatoriamente, precisa ao mesmo tempo “tocar com arte o seu instrumento”, renovar sua técnica e empenhar-se pela harmonia do conjunto. Isto significa preservar o passado tradicional da Medicina – como certos preceitos éticos- e projetar-se ao  futuro – ineditismos e renovações continuadas de métodos-, sempre atento à totalidade. Em outras palavras, o médico atuante e atualizado vê-se necessitado de mesclar conteúdos vigorosos do passado da Medicina com a vitalidade do progresso reiterado. São retornos e avanços pelos caminhos da Medicina que conjugam memória (do acervo da Medicina), esperança (das renovações e inovações) e expectativas (do resultado) na plataforma da relação Medicina-médico-paciente nas distintas especialidades médicas e áreas de atuação.

Nesta segunda década do século XXI, é preciso reforçar a distinção entre a esperança e a expectativa em relação ao magnetismo da biotecnologia. A Bioética da Beira do leito entende que a esperança está ligada à consciência que a recomendação de aplicação está dentro das boas práticas validadas e, por isso, com chance de obter bom resultado; já a expectativa conta com a efetiva realização de algo que  ainda não aconteceu.

Como a complexidade domina a Medicina, é incessante o estímulo para o apoio da capacidade humana pela tecnologia que amplia os órgãos dos sentidos para desvendar os mistérios da saúde. Relatos históricos apontam o êxtase que provocou na classe médica – e na sociedade- o advento da radiografia, da eletrocardiografia (“o supremo tribunal das arritmias”) e da reação de Wassermann (August Paul Von Wassermann, 1866-1925), no alvorecer do século XX, para não falar no estetoscópio no século XIX. A ampliação do poder de examinar por meio da tecnologia há muito, pois, é instrumento do desejo de transformação de incertezas em certezas, na área da saúde.

Parece que nos esquecemos deste furor provocado pelas máquinas já obsoletas e ficamos sucessivamente entusiasmados pelas incríveis  inovações tecnológicas. Mas, precisamos reter da história que toda inovação tecnológica desde antigamente provocou equívocos, como desestímulo ao exame físico e desviantes resultados falso-positivos e falso-negativos, bem como se associou a novas entidades nosológicas, pelo implante de órteses e próteses, por exemplo. Adaptando o químico Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794), os efeitos não se criam nem se perdem, eles se transformam. Por isso, a exaltada maravilha atual das inovações tecnológicas como um bem cada vez maior de certa forma desconsiderando adversidades é razão para a Bioética da Beira do leito manter aceso o alerta sobre o perigo da condição humana chamada expectativa.

Visto que a Medicina resolutiva adquiriu forte expressão de disponibilidade tecnológica – máquinas produzindo imagens altamente esclarecedoras e números “patognomônicos”-, este “maquinocentrismo” pode, então, passar- se como a quintessência da Medicina. Fica compreensível a dificuldade de manter a conotação de exame complementar e, assim, não pular etapas clássicas. Açodamento, todavia, é íntimo da expectativa.

Este desenvolvimento das ciências da saúde entre máquinas cada vez mais resolutivas, permitindo afirmações até anatomopatológicas de modo não invasivo, tem sustentado o conceito que o nível de capacidade tecnológica é régua do status da Medicina entre o passado e o futuro. Dificilmente um avanço tecnológico recua, mas, habitualmente, exige ajustes, alguns pelo aspecto técnico em si, a maioria por certa compulsão em ampliar o uso e pequena parcela em função de não consentimentos. Tudo isso adverte para possíveis efeitos negativos da expectativa que se forma em torno de um sucesso             .

De fato, é preciso não se esquecer da sabedoria antiga que ensina que criar expectativas é adubar frustrações. Estas florescem sobre o médico na beira do leito quando o seu empenho bem qualificado  pela competência profissional desemboca numa não correspondência do paciente ao pretendido. Por isso é que a Bioética da beira do leito incentiva o treinamento sobre como se preparar para lidar com o inesperado do rigor técnico-científico aplicado. Na verdade, como devemos nos organizar para o inesperado (mais no sentido de indesejado do que de improvável).

Vale ouro o médico ter consigo um passado repassado, ou seja,  exercitado sobre atitudes, especialmente no campo da comunicação, pois o futuro inclui uma beira do leito altamente repetitiva em suas imprevisibilidades biológicas e reações humanas. É treinamento que adquire crescente status mandatório. Um aspecto prático da utilidade é o efeito  desorganizador na mente do médico causado pelo desequilíbrio entre o cognitivo – o técnico-científico que, diga-se de passagem, domina o currículo da pós-graduação- e a capacidade de resposta estética à situação -percepção, emoção e pensamento-, quando ocorre frustração da expectativa pelo não consentimento pelo paciente.

O paciente se nega? Como assim? expressa a decepção. Mas, se por um lado, o desejo por pronta resolução é humano, por outro, soa desumano desconsiderar que aquele corpo doente e agora “rebelde” tem uma cabeça com configurações muito próprias de nascença e de vivência para reações ao desconhecido, inesperado e imprevisível.

É na tensão desencadeada pela resposta contraposta do paciente onde a sensação de riqueza tecnológica de que dispõe o médico pode virar uma sensação de carência do profissionalismo. Instado ao bem, frustra-se e se desespera. Talvez não ocorra se não pular etapas, começar pela boa anamnese e, assim, construir, passo-a-passo, uma conexão médico-paciente equilibrada entre rigor, esperança e expectativa e, capital, temperada pela comunicação objetiva, clara e predisposta à compreensão mútua.

Continua

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