O sigilo médico é hipocrático e um bem maior da relação médico-paciente. Infringi-lo é falta gravíssima. Banalizá-lo é ameaça das conexões abertas das redes sociais. Hipócrates não teve whatsApp, nunca teria. Médicos somos todos filhos sob juramento do Pai da Medicina e ao redor do nosso profissionalismo moderno ocorre um fluxo agitado de informações que lidamos como sigilosas, de que somos fonte em grande parte, comandado por pacientes e familiares em aplicativos multiplataforma de mensagens instantâneas.
O toque do telefone fixo do consultório tradicional tem sido rapidamente substituído pelo efeito sonoro junto ao nosso corpo que avisa que uma mensagem chegou ao smartphone onde quer que estejamos. É plantão permanente mesmo nos achando estar de folga. A relação médico-paciente tornou-se conexão médico-paciente pela ubiquidade. Encaixou-se na fidelidade sem fio (wifi-wireless fidelity).
O médico bem comunicar-se com o paciente – e familiar- é importante instrumento de humanização e promove o esclarecimento que sustenta o processo de consentimento do paciente à recomendação médica. Temos agora a humanização wifi.
O conceito de nebuloso de tantas dúvidas fora de nossas mãos da nossa formação médica dá lugar à presunção fosfórica que uma nuvem armazena a solução ao alcance dos dedos. Neste contexto de liberação de fronteiras que inclui o Dr. Google tornando leigos nossos colegas sem número de CRM, a organização do pensamento sobre o sigilo como uma lei interior a respeito de privacidade e de intimidade está em transformação. Ameaça o sigilo profissional, multiplica os agentes comunicadores e, não importa que a informação não tenha sido propagada pela boca- ou pelos dedos- do médico, faz com que Hipócrates que como se sabe é um imortal vivo há cerca de 25 séculos esmere-se para preservar a beira do leito alinhada com a tradição. Um avesso a mudanças sob bombardeio da moralidade de novos tempos.
Aplicativos multiplataforma de mensagens instantâneas que já são do domínio das crianças – futuros protagonistas da relação médico-paciente- antes de se tornarem alfabetizadas incluíram-se no dia-a-dia da interação médico-paciente-familiar e passaram a veicular informações de várias naturezas a respeito do atendimento, tanto as simples como a mensagem aliviadora dizendo que a cirurgia terminou e foi tudo bem, quanto um relato de uma explicação complexa do médico que um familiar apreensivo passa a demais conforme seu entendimento e gerando pluralidade de recepções cheias de analogias e imaginações.
Esta aplicação de rede social envolvendo única beira do leito e que sob a forma de rede amplia a comunicação sobre o determinado paciente precisa de reflexões sobre pontos positivos e negativos numa visão a partir do médico e seu compromisso e preocupação com a ética de modo geral e com a preservação do sigilo em especial. Acontece que as relações ao seu entorno não param de se ampliar, inclusive, se distanciam dos objetivos primários relacionados à saúde de uma pessoa, prestando-se a finalidades de interesse de membros da rede que se ramifica sem muito controle.
Há indícios que redes sociais estão atuantes não apenas numa única beira do leito de um certo paciente, mas, congregando um conjunto de beiras do leito em torno de um denominador comum, a terapêutica de uma situação clínica, por exemplo. Vários pacientes e famílias organizam-se e trocam informações que entendem de interesse de todos, sem a participação direta do médico, mas, como não pode deixar de ser, com forte influência indireta sobre o conteúdo das notícias. Verifica-se a consecução de uma reportagem observadora, investigativa, interpretativa e crítica sobre dados que compõem o sigilo profissional que se apresentam como mensagens voluntárias e propagam entre leigos o que o médico não poderia revelar nesta dimensão expandida. Diríamos, bom é problema de cada paciente e familiar manifestarem-se entre si sobre suas moléstias. Será?
Acontece que os textos veiculados contém relatos das conversas de cada partícipe do grupo com seus médicos, trazendo o potencial de generalizações sobre individualidades, vale dizer, fora de um contexto original muito peculiar. Distorções de várias naturezas são possíveis, não somente pela falta de entendimento, como também por má-fé.
Insatisfações de quaisquer tipos, associadas ou não a má evolução clínica – mas principalmente-, são fontes de disseminações de contaminações negativas do clima da rede social. A tradução indevida tem o potencial de rastilho. Médicos de pacientes que os demais desconhecem podem resultar mal avaliados pelo grupo sem oportunidade de fazer esclarecimentos. A versão vira verdade indubitável. A reversão é árdua, embaraçosa e nem sempre possível. Deixa sequelas para todos.
Inovações por melhor intencionadas provocam o bem e o mal. É um processo onde haverá sempre uma bula com adversidades a serem consideradas. A tendência do médico é privilegiar os aspectos positivos considerando o que pode ser benéfico para o paciente, inclusive o ineditismo que justifica riscos. Por isso, cabe à Bioética alertar para a possibilidade de mau uso de veículos de comunicação instantâneos sem salvaguardas, à margem de sua ingerência profissional. Pois, ele será, invariavelmente o manancial. Como se diz, palavra que sai da boca é como o dentifrício que é impossível de retornar para o tubo. E, não infrequente, não nos ouvimos falar. Editar o pensamento é preciso.
Assim sendo, cada médico necessita estar bem atento ao desenvolvimento da sua comunicação com paciente e familiar para que ela possa ser a mais humana possível, preocupada em bem esclarecer e bem acolher, mas também, num grau de ponderação para evitar palavras e assuntos desnecessários pelas potencialidades de virar fontes de má-interpretação em pontas de dedo incontroláveis.