É simplista, mas é como funciona na beira do leito: entre o médico e o paciente forma-se uma relação em que tomadas de decisão dependem de outra relação formada pela Medicina e doença. Não é que o médico e a Medicina estão num polo e o paciente e a doença em outro. Há um entrelaçamento de demanda que faz com que cada um destes elementos mantenham referências com os demais, é clássico. Assim tem corrido os atendimentos que, cada vez mais sujeitos a uma crescente diversidade de armadilhas da natureza interna e externa desembocam no controle ou não dos desvios da saúde da sociedade. Uma referência moderna sobre a questão é a Bioética principialista.
Fica bem claro na análise da Beneficência. A atualidade dos cuidados na beira do leito inclui um número extenso de métodos beneficentes que podem ser mentalizados nos dois blocos acima mencionados, o captador-aplicador constituído pelo ser humano (médico-paciente) e o municiador formado pela ciência e seu objeto de estudo (Medicina-doença). Entretanto, a aplicação pelo médico ao paciente no ecossistema da beira do leito – que inclui a instituição de saúde e o sistema de saúde, aqui alocados na Medicina, uma concessão do Pentágono da Beira do leito – é passível de restrições biológicas -como a alergia (relação Medicina-paciente)-, morais (relação médico-paciente), sócio-econômicas (relação Medicina-médico) e da vontade, por exemplo, apresentar-se – ou não- para uma consulta (relação doença-paciente).
Isto posto, a Não maleficência, este espelho invertido da Beneficência e que o progresso da Medicina lhe trouxe gradações aceitáveis, até porque incluem as inevitáveis -comprometendo o sentido do Não-, pode ser vista sob mesmas apreciações das relações. O malefício admite as representações biológicas – como má evolução clínica de uma intervenção bem indicada e bem aplicada (relação Medicina-doença), morais – como efeito da transfusão de sangue em paciente Testemunha de Jeová, ou erro profissional (relação médico-paciente), sócio-econômico – como a distanásia (relação Medicina-doença) e da vontade – como o não consentimento ao benefício por leitura da bula (relação doença-paciente).
A questão se amplia na análise da Autonomia. O racional do princípio ligado à evitação do abuso (uso distorcido) em seu amplo sentido lida com tantos modos de pensar que o necessário respeito à Autonomia do paciente parece nos dias de hoje depender estritamente do fundamentalismo derivado do relatório Belmont: o paciente age com autonomia quando ele mesmo delibera sozinho acerca da recomendação a ser aplicada, impermeável a expressões de outros.
Trata-se de uma liberdade que coloca em segundo plano a visão prioritária e imperativa do benefício que foi preconizada por Hipócrates. Mas, creio que o austero, sedutor e imortal grego da ilha de Cós não está exatamente adormecido, vaga sonâmbulo na beira do leito atento às revelações de vanguarda, alerta a transgressões do seu Juramento, vale dizer, o DNA do médico contém moléculas hipocráticas originais que se expressam reinserindo a tradição conforme o Pai da Medicina no ser médico. Por isso, a missão de uma verdadeira engenharia genética pela Bioética para permitir ajustes mentais das novas gerações ao conceito do amplo -mas não estrito, haja vista a situação do iminente risco de morte evitável- respeito à autonomia. Um fato que acontece na prática e causa efeito restritivo é que poucos das velhas gerações contribuem como exemplo para novos posicionamentos adotando e seguindo a Bioética.
No mundo real da beira do leito há o cotidiano das limitações que comprometem a legitimidade da afirmação do exercício de real Autonomia. Existe o biológico capitaneado pela memória de casos de má-evolução, pessoal ou de terceiros (relação Medicina-doença), o moral associado a impossibilidades de atendimento ao paciente por razões éticas do médico (relação médico-paciente), o sócio-econômico, por exemplo uma tomada de decisão baseada em peculiaridades da conexão com a fonte pagadora- convênio (relação Medicina-doença) e o da vontade, ilustrado pela priorização de outros compromissos (relação doença-paciente).
Mencionamos acima a linha de pensamento que o benefício da Medicina deveria ficar em segundo plano em relação à Autonomia do paciente e, também, a força na quádrupla inter-relação da relação médico-doença. Não é incomum, tolera-se a autonomia na linguagem e na ação na beira do leito, mas a recrimina no pensamento. O cenário de dissociação não costuma ser treinado e o percentual de médicos que insiste pelo consentimento, fazendo como entende melhor, uns de modo mais comedido, outros num corpo-a-corpo mais impositivo ante um não, mas todos comandados pelo relógio, implacável regulador do tempo para o paciente dizer sim ou não.
Nesta época de decisões muito apressadas e pouco refletidas, é difícil lidar com as antinomias entre Beneficência e Autonomia, aliás, como profetizado por Van Rensselaer Potter (1911-2001). O progresso da ciência ligada à Medicina visa à beneficência a ser validada e disponibilizada, enquanto que a proposição de valores e regras (código moral), os comportamentos reais em face dos códigos (moralidade), bem como as práticas de modo geral (ética) não subentendem submissão estrita à ciência progressista. Ampliam-se os métodos beneficentes, murcham-se as contraposições leigas, muito embora seja a ampliação dos métodos que intensifica os alertas da Bioética. Bom para quem, eis a questão.
Tenho observado que tomadas de decisão alheias, são, ao mesmo tempo entendidas no meio profissional em que convivo como estando em conformidade com o respeito à Autonomia e alvo de uma crítica de natureza consequencialista, gerando muitos será que? Esta inconsonância entre o pessoal e o profissional é um dos aspectos contemporâneos de grande influência na harmonia do ecossistema da beira do leito e necessita do judicioso olhar crítico e articulador a que se propõe a Bioética. Perante as imprevisibilidades comuns da beira do leito, qualquer interação entre Beneficência e Autonomia exige uma visão interdependente entre liberdade e responsabilidade.