Recentemente, o marido de uma paciente em consulta criticou a esposa dizendo que ela não havia tomado o medicamento que eu lhe havia prescrito porque ficara impressionada com o que lera na bula, mas que ela estava fazendo uso de um multivitamínico rotulado como específico para a mulher com grande entusiasmo, confiante no marketing da mídia.
Confesso que nunca me deparara com um fármaco com identidade de gênero, pesquisei na hora, percebi que os produtos não afinavam com a minha cartilha bioética, porém não transpareci a minha interpretação para o casal.
A boa notícia associada a esta modalidade de pós-verdade farmacêutica é que a paciente não tinha nenhum diagnóstico importante, que o fármaco que prescrevera objetivava a redução do risco cardiovascular, portanto, nenhuma certeza que a individualidade da paciente pudesse ter ficado prejudicada com o não uso e que o multivitamínico nas palavras da paciente havia lhe restituído qualidade de vida.
A má notícia é que a consciência do médico- a minha no caso- ficou sob fogo cruzado entre o respeito ao efeito placebo e a visão predominante de adversidade sobre o benefício validado de uma bula municiado pelo direito à autonomia pelo paciente e a missão profissional de expor ao paciente a atualidade de saber da Medicina contemporânea municiada pela Ética. Sim, não tenho objeção de consciência para considerar válida a iniciativa de renúncia do paciente pela informação da bula, mas tenho fortemente para fazer uma prescrição apenas indicada pelo vai que…
Entendo que o temperamento do médico dita formas de comportamento na situação exposta. Procurei mais racionalidade e menos reação emocional remexendo no depósito da maturidade profissional. Naquele rápido solilóquio que os antigos chamavam de raciocínio clínico já na anamnese, analisei as vantagens e as desvantagens de uma irrestrita tolerância à opinião da paciente ou de abraçar as palavras do marido e partir para uma exposição sobre evidências acerca das relações benefício/segurança e utilidade/futilidade. Temperei os pensamentos com o resgate da memória de fatos análogos, tais como rascunhos em busca do mais válido, fidelidade ao que aconteceu de fato nas ocasiões em que optei por uma subjetividade de silêncio como arte de consultar ou por uma objetividade calcada no estado da arte. Impressionavam-se os dois olhares expectantes diante de mim, enxergando-me como uma nuvem preta prestes a verter um palavrório, um temeroso e outro desejoso.
Ali estava um médico fazendo uma consulta ao vivo, sabendo muito bem que a boca era qual um tubo de dentifrício que não recolhe o que dele saiu, sem nenhuma nova queixa de sintomas por parte da paciente e presumindo que o exame físico não traria nenhuma informação objetiva à semelhança dos prévios realizados. E vendo a paciente com aparente confiança no médico para diante dele voltar a se apresentar e com entendimento de uma despesa válida do honorário da consulta, mas com alta chance de descarte de eventual orientação a receber. Tratava-se de um encontro médico-paciente sem uma definição da real relação médico-paciente. Não mentir era o limite de atenção para qualquer algoritmo de pronunciamento entre versátil e obstinado.
Sabemos que há certas mentiras justificáveis perante situações autoritárias, mas não pode haver mentira de médico. No sexto ano da Faculdade, fui residente na acepção da palavra na Santa Casa do Rio de Janeiro, na Primeira Clínica Médica. Tinha a permissão para estudar no Gabinete do Professor Clementino Fraga Filho onde havia uma rica biblioteca e lá ouvi do mestre numa tarde em que ele retornara para pegar um livro: “… Você nunca sabe se o paciente está dizendo a verdade, mas como médico nunca minta para ele, no máximo omita alguma informação quando achar conveniente…“. Já gastei muito o ensinamento que o cotidiano reforçou. Mentir, além de tudo, significa ter uma boa memória para dar continuidade à mentira e o prontuário do paciente não se presta a este registro de lembrança.
Exponho este caso porque ele ilustra a necessidade do médico construir o profissionalismo para chamar de meu, ter personalidade para se apresentar com a sua cara em momentos de conflitos de interesse, especialmente quando há vigoroso efeito manada, ser autêntico na relação médico-paciente, prudente quanto ao timing de manifestações de grande impacto, exercer a boa comunicação para noticiar o que o paciente não deseja ouvir, consciente que o valioso saber da técnico-ciência que domina precisa representar sabedoria para distintas expressões de vulnerabilidade do paciente.
Voltando ao caso, decidi de imediato que não iria mentir discursando sobre as maravilhas de uma suplementação multivitamínica talhada por um bioquímico-alfaiate para as necessidades de um gênero humano para, assim, substanciar o efeito placebo vigente. Qualquer porventura comichão neste sentido seria rapidamente bloqueada em face da inquietude do marido, que, aos 42 anos de casamente, demonstrava que desejava o melhor para a esposa.
Optei pela estratégia de me concentrar na anamnese dirigida e partir de imediato para o exame físico, assim, procurando desanuviar as nuvens negras que eu representava. A seguir, analisei em voz alta o resultado laboratorial de controle- solicitado com esta intenção- do medicamento anti-colesterol e, resultado mantido, reforcei a conveniência do medicamento e a necessidade de uma atenção a duas adversidades mais frequentes mas que era tranquilo estatisticamente, que valia a pena usar. Refiz a receita, destaquei uso contínuo e carimbei com a força do dever cumprido.
Reproduzi desta maneira a consulta anterior com a diferença de saber da não adesão e da omissão em relação ao multivitamínico de gênero, afinal, a paciente que era capaz – o marido não era seu representante- em nenhum momento tocara nos dois assuntos, logo, a Ética me desobrigava a repercuti-los. Por tal comportamento, esperei a explosão da inquietude do marido. Nada aconteceu, fim da consulta.
No dia seguinte, o marido me telefonou. Esperando por algum tipo de crítica, ouvi que o desculpasse, mas ele rasgara a nova receita e jogara fora a caixa cheia do medicamento que havia comprado após a consulta anterior, entrara até na internet para se informar como deveria proceder corretamente para não contaminar os mananciais. E a surpresa: fora à Farmácia comprar outra caixa do multivitamínico para a esposa e, desculpando-se mais uma vez, confessava que comprou para si a versão homem.
Medicina sim ou Medicina não só existe se for com a participação do paciente, pois qualquer apriorismo que a experiência construir pretendendo o melhor para o paciente será surpreendido por um novo fato. Homenageando Clarisse Lispector (1920-1977): “… Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue. Os sentimentos são sempre uma surpresa…”.
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