3835

PUBLICAÇÕES DESDE 2014

326- Bioética e pensamento de complexidade

img_auguste_rodin_3
O pensador de François-Auguste-René Rodin (1840-1917)

approve symbol

aforismos-domingo-hipocrates_nacima20140328_0096_19
Hipócrates (460ac-370 ac)

 

São mais de duas dezenas de séculos desde Hipócrates. Nestes cerca de 900 mil dias, o exercício da Medicina foi mudando com maior ou menor aceleração. Desenvolveram-se o diagnóstico, a terapêutica e a prevenção até como praticamos atualmente. A pesquisa sistematizada veio sustentar a assistência. O idiopático, o criptogenético e o essencial ganharam explicações. Médico e paciente ampliaram as mútuas conexões. Sistemas de saúde se desenvolveram e intermediários proliferaram. Deveres e direitos foram definidos. Certos atos médicos praticados em determinados países são proibidos em outros.

Hipócrates teve uma vivência profissional individualizada. Pioneiro, ele contestou a simplicidade da causa divina e desenvolveu pensamentos então complexos entre observações realísticas e manifestações de criatividade. Ele sacou o valor da continuidade profissional tal qual uma herança de pai para filho e do sigilo para evitar o constrangimento por revelações.

Subsequentes experiências profissionais geograficamente restritas, aqui e ali, passaram de geração para geração, foram aos poucos expandindo para outros territórios, até ganhar, num salto histórico, expressão da experiência globalizada em publicações em revistas num vai-e-vem de recepção de manuscritos e de expedição a assinantes. Filtros editorais tornaram-se avalistas de qualidade científica. Mais recentemente, a Medicina baseada em evidências projetou  premissas de aplicação ética e, via diretrizes, reduziu a importância das chamadas Escolas ligadas a professores e a Serviços e as substituiu por padrões de tomadas de decisão subscritas por Sociedades de especialidades. “Aplico diretrizes para dormir tranquilo” é comentário ouvido que ilustra a dimensão do impacto das mesmas na prática profissional.

Não há dúvida que em meio a crescentes complexidades técnico-científicas, as bases para o juízo crítico clínico ficaram facilitadas pela organização em diretrizes clínicas, inclusive por meio de atualizações frequentes. Cada nova edição suscita a sensação de um passo adiante na prestação de serviço ao paciente – “agora será melhor”. A experiência pessoal é desafiada a se submeter a certas revisões e, ao mesmo tempo, ela serve de norte para análise de divergências entre diretrizes de diferentes Sociedades.

Todavia, nem por isso, este auxílio de varredura da literatura e de sistematização de níveis de utilidade e de eficácia simplificou de fato o exercício da Medicina. Pelo contrário, a Medicina persiste complexa. Aliás, ela nunca deixou- nem deixará- de ser desde Hipócrates. Cada manobra de simplificação por mais bem-vinda que seja, tem o alto potencial de se desdobrar numa rede de interdependências que inclui novos desafios. Por menores que possam se situar numa escala de visão do médico, eles são enormes para o paciente, como o claustrofóbico instado a se submeter a uma ressonância magnética.

O desenvolvimento de várias especialidades atesta o desdobramento da complexidade. A busca de certezas em genes pela Medicina personalizada assim confirma. O “carimbo” omeprazol é prova e ele em si associa-se a evidências preocupantes. As bulas, então, contém palavras que provocam comportamento do paciente distinto ao do sugerido na frente do médico que também verbalizou certas advertências e as consequências do niilismo.

Aliás, é “simples” compreender a complexidade em Medicina. Ela está na inter-relação entre o conhecido e o desconhecido e na realidade que cada “novo conhecido” para um ser humano aplicar em outro ser humano desdobra-se qual ramos de uma árvore frondosa em novos desconhecidos. É clássico que a Medicina não pode prometer resultados- que são as certezas-, ela os almeja sustentada pelo empenho, mas a ocorrência de insucessos e de adversidades nunca podem ser desconsiderados.

De uma complexidade hipocrática baseada no desconhecido “absoluto”, a Medicina caminhou para o estágio atual de complexidade ditada por novos desconhecidos – associados à velha imprevisibilidade- da aplicação do novos conhecidos- como translações de pesquisas recentes e inovações tecnológicas de ponta.

As interfaces do aqui (disponível) e agora (atualizado) entre conhecido e desconhecido determinam o pensamento sobre complexidade do médico que possui um número de CRM ativo. Há vários compartimentos a serem percorridos pelos cerca de 500 mil médicos brasileiros. Na pesquisa, eles incluem transitar pela concepção que melhor possa preencher uma lacuna da beira do leito e na assistência, eles incluem  direcionar métodos em função de necessidades de resultados.

A Bioética insere-se no pensamento multi-desdobrante de complexidade.  A chamada Bioética principialista ajusta-se e coopera para que conhecidos e desconhecidos possam ser mais adequadamente reconhecidos na conexão médico/pesquisador-paciente/voluntário de pesquisa em duas mãos de direção.

Entendo que ponto de destaque do pensamento de complexidade deste início de século XXI é o ritual do consentimento pelo paciente. É para ele que convergem o conhecimento – benefício e segurança idealizados pelo médico/pesquisador segundo o estado da arte, a Ética e a legalidade- para o encontro com a revelação de desconhecimentos- do que o paciente não sabe como possibilidades de atuação e evolução clínica e do que o médico/pesquisador não sabe como desejos, preferências, valores e objetivos do paciente/voluntário de pesquisa. Matérias-prima para contraposições mais ou menos resolvíveis, sendo que as que ultrapassam um “sarrafo de complexidade”, são estimuladoras da cooperação da Bioética.

Assim sendo, o desenvolvimento de um atual pensamento de complexidade, herdeiro do clássico raciocínio clínico sustentado pelos órgãos dos sentidos e visivelmente encorpado pela antropotecnologia cada vez mais presente, é tanto mais respeitoso ao paciente/voluntário de pesquisa quanto mais se destaca como um processo preocupado com a construção de esclarecimentos que sustentam a adesão irrestrita ou com recomposições possíveis.

Por este conceito de complexidade, verifica-se que o sim ou o não que é emitido pelo paciente/voluntário de pesquisa ao médico/pesquisador, representa na verdade consentimento- ou não- ao validado pela Medicina da atualidade. Esta noção tem importante implicação ética: prudência e zelo na Medicina contemporânea incluem uma visão crítica e dinâmica da responsabilidade moral da sua missão.

 

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES

fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts
set0 Posts
out0 Posts
nov0 Posts
dez0 Posts
jan0 Posts
fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts

fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts
set0 Posts
out0 Posts
nov0 Posts
dez0 Posts
jan0 Posts
fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts