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319- Bioética, autonomia e significados de sins e de nãos

Decisão.jpgQuem mais frequentemente não consente entre si? O médico ou o paciente? Evidências do mundo real da beira do leito indicam que é o médico. Nas circunstâncias de um de fato diálogo esclarecedor a respeito de uma conduta recomendada, o paciente costuma preceder o sim ou o não final por algumas manifestações de desejos, preferências, valores e objetivos. Indagações incluem reforços para certeza do compreendido, ideias opostas às emitidas pelo médico e propostas de ajustes. Os “vais-e-vens” modulam o processo deliberativo com sins e nãos intermediários – a maioria do médico- direcionando para o sim ou o não final do paciente, expressão maior do consentimento/direito à autonomia.

A assim movimentada arrumação mental da recomendação do médico pelo paciente costuma ser influenciada pela sua memória e por circunstantes. O desejo de não sofrer os mesmos males de alguém próximo que acompanhou sob alto impacto  e a estima pela opinião de uma pessoa da sua intimidade podem inspirar tipos de respostas que soam preferências para o médico. Nem sempre este background é comentado, mas caso tais influências fiquem claras para o médico, a sua compreensão é útil para a condução de um diálogo em prol da mais livre e da mais autêntica expressão de consentimento- ou não- pelo paciente.

Há dois aspectos relevantes envolvidos. O primeiro diz respeito ao conceito da autonomia, à auto-determinação. Passada a fase de consolidação do princípio na relação médico-paciente, vivencia-se uma correção de “exagero de convencimento” para a sua adoção. Exagero em termos maniqueístas em que autonomia é bom e paternalismo é mau. Compreende-se, atualmente, que o termo paternalismo em sua aplicação ao exercício de um poder pelo médico pode ser amenizado e desligado do inaceitável contexto de autoritarismo, arbitrariedade, inquestionabilidade e privação de liberdade. Cabe uma suavidade que atapete análises e re-análises conduzidas pela preocupação com a prudência, pelo reforço da voz experiente sobre benefício/dano/segurança e pela intenção de suporte para o trânsito por escolhas. Uma visão de esclarecimento com toda a força do significado de instruir.

Os argumentos que o médico apresenta ao paciente para obter o seu consentimento uma vez pronta a recomendação precisam ser trabalhados quando há impactos de discordância no paciente. Os preâmbulos para o sim ou o não não devem ser entendidos como um produto exatamente pronto. Não deve haver a exigência de um marcante imediatismo de resposta nas circunstâncias eletivas por parte do médico, é essencial dispor-se a caminhar junto com o paciente por um período de tempo bastante para dar a máxima legitimidade ao destino decisório. Por isso, a noção de processo de consentimento, que, dentro do possível evitaria um momento único e final de decisão. O processo de consentimento constitui uma elaboração em “voz alta” ao longo das várias fases construturas da recomendação que culminará na decisão autorizadora- ou não. Os endossos do paciente- ou não- passo-a-passo facilitam prover o melhor ajuste ao doente e não à doença. Inclusive, dá oportunidade para o reconhecimento de divergências que já determinam a suspensão do atendimento, evitando desperdícios de tempo e de recursos.

O segundo refere-se  à autonomia no sentido da liberdade de ser “eu próprio” de modo absoluto. Esta concepção de total independência, de eremita dono do seu nariz e do seu entorno, rivaliza com as obrigações de cada um com os outros, de modo geral e setorizadas e, por isso, o “eu próprio” subentende invariavelmente um “nós”. Neste contexto, recorde-se como houve uma transformação do conceito da presença de familiares que há poucas décadas eram “testemunhas” indesejadas. De fato, cresceu a noção de acompanhante no lugar de tão-somente visitante, justificando um ajuste para relação médico-paciente/familiar. Em outras palavras, o consentimento-ou não-pelo paciente deve ser visto como reativo a uma mixagem da posição do médico, da essência cognitiva do paciente e das “imediações” de afeto. Uma implicação é que considerações sobre o consentimento ter sido livre e esclarecido não podem deixar de lado o sentido gregário do ser humano.

A Bioética da Beira do leito preocupa-se com os intervenientes da integração decisória. Ela dirige o olhar para a composição humana de partícipes representando agentes morais, para o respeito a direitos e para a obediência a regras. A Bioética da Beira do leito entende que é reducionista qualquer visão não multifatorial sobre o consentimento – a expressão legal do princípio moral da autonomia- que bate o martelo da tomada de decisão.

A vivência com gerenciamento de crises da beira do leito indica considerar que há sins consentidores ao médico infiltrados por nãos que ficam ocultos. É o caso do paciente que se deixa conduzir vencido pela preocupação com a imagem e com a responsabilidade da objeção. Estes salpicos ficam guardados na mente do paciente e podem significar ainda incertezas, dúvidas persistentes sobre a opinião de circunstantes estimados e um certo rancor pela própria incapacidade de não ter sido mais autêntico. Revelações podem acontecer quando ocorrem adversidades evolutivas e carregam alto potencial de criar desentendimentos na relação médico-paciente/familiar.

Voltando à pergunta inicial,  o fato de o médico frequentemente não consentir com solicitações de ajuste no processo de tomada de decisão é intencionalmente benéfico, costuma ser respeitado pelo paciente conformando-se em “ser leigo”. Todavia, quando mal introjetadas, certos não atendimentos a vontades do paciente, por mais ilusões que estas possam ser, e, com  menos influência aparente na verbalização de um sim à recomendação médica,  se colocados sob o tapete fazem calombos e causam tropeções futuros. Por isso, ser médico ético e empático inclui a arte da boa comunicação na aplicação da ciência.

Homenageando William Shakespeare (1564-1616) Há mais coisas entre o médico e o paciente do que sonha a autonomia!   

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