Aqui respeitamos o direito do paciente de decidir livremente. Aqui usamos todos os recursos disponíveis. São dois cartazes que poderiam estar visíveis na beira do leito. Eles precisam ser cumpridos. Mas, além de tudo, devem ser compreendidos no equilíbrio entre eles, do quantum a aplicar ou a não aplicar de cada um. Em cada tomada de decisão, é da Ética especificar a liberdade no consentimento e a utilização de recursos na proporção que se entende respeitosa a aspectos morais, administrativos e legais.
Há um extenso repertório de situações, emblemáticas ou não, onde autonomia e solidariedade “duelam” pela primazia em tomadas de decisão. A autonomia representando privacidade e auto-determinação sustenta a decisão de não aproveitar o Outubro rosa e o Novembro azul, colocando-se, assim, acima da solidariedade. Já o iminente risco de morte passível de reversibilidade pelo tratamento privilegia a solidariedade, a visão social de proteção à vida do vulnerável, dispondo-a acima do direito à autonomia.
O desenvolvimento do direito à autonomia pelo paciente ocorreu considerando a ideia de antônimo à solidariedade vista como orientação da comunidade, tendo a Medicina como um dos fundamentos e o médico como um dos seus agentes. Uma vez consolidado o princípio da autonomia após poucas décadas ao final do século XX, enxergou-se com mais clareza que ele não deveria ser um oposto à solidariedade. Se a terminalidade da vida é um campo que dá valor à autonomia, a disponibilização dos cuidados paliativos tornou evidente que autonomia e solidariedade são conciliáveis, inclusive interdependentes.
É sabido como a falta de um termo designativo desfavorece a exposição da novidade. No caso, uma palavra unificadora de fundamentos para um conceito. Por isso, para alavancar a identidade da conexão autonomia-solidariedade, a França passou a se valer da palavra accompagnement http://paperity.org/p/78410804/the-role-of-accompagnement-in-the-end-of-life-debate-in-france-from-solidarity-to, já existente, estendendo o significado de suporte, presença, para a conotação de prática médica. Nomeou-se, assim, a mão dada entre valores sociais em prol de uma coletividade de vulneráveis e poder da pessoa de se individualizar quanto à apreciação da própria vulnerabilidade.
Este senso de suporte foi expandido para além do âmbito dos cuidados paliativos. Ele significa ouvir os interesses do paciente, tolerá-los na oposição de opinião e persistir ao seu lado, na forma profissional possível e considerar a participação de outros tipos de apoio como social e espiritual. Este comportamento anti-abandono é enorme avanço na relação médico-paciente. Recordo-me que há não muitas décadas, o paciente que recebia alta a pedido era informado que perdia o direito à “re-matrícula” num grande hospital de ensino e não ia para casa sem orientações. Hoje, este mesmo paciente com desejo desarticulado da recomendação médica de se manter hospitalizado, não somente sai com um conjunto de recomendações por escrito e mantém uma receptividade latente para arrependimento e reinternação.
Evidentemente, não se espera consenso de médicos e de especialidades no entendimento de autonomia e solidariedade como dois valores compatíveis entre si na beira do leito. Há infinitas circunstâncias clínicas e múltiplas apreciações profissionais que podem limitar a prática da idealidade de suporte. O paciente que desiste de operar catarata porque soube de um caso de infecção não tem alternativa como pode ter aquele que teria indicação de ficar no hospital essencialmente para completar um tempo de antibioticoterapia endovenosa. Aqui respeitamos o direito do paciente de decidir livremente e Aqui usamos todos os recursos disponíveis, ao mesmo tempo que ambas moralmente defensáveis, cada uma carrega o entendimento em potencial de ascendência sobre a outra como lídima representante da prudência e do zelo.
A Bioética procura facilitar a “garimpagem” das escolhas das variáveis em jogo para uma tomada de decisão, sabendo da inexistência de padrão-ouro. Um dos objetivos é dar clareza, tanto para a compreensão técnica pelo leigo, quanto para a conscientização do médico que estar bem disposto a fazer o benefício não significa necessariamente mesma disposição do paciente. Em outras palavras, a Bioética coopera para promover garus de harmonia entre o que é da pessoa (autonomia) e o coletivo da solidariedade.
Não posso deixar de mencionar o paternalismo na abordagem de uma tema protagonizado pela autonomia, por mais paradoxal que possa transparecer. Refiro-me ao paternalismo fraco que insiste no usufruto pelo paciente de recursos solidariamente providos pela sociedade nas mãos do médico – profissionais da saúde em geral. Ele tem um espaço na fase n-1 do processo de tomada de decisão que não ofende nem a privacidade nem a autodeterminação da autonomia – que, então, dará a palavra final. Esclarecer ao paciente vantagens de uma mudança da sua opinião inicial em sucessivas oportunidades até reconhecer que a compreensão de fato ocorreu e representa real fundamento para a tomada de decisão é suporte justo e generoso para a integração de Aqui respeitamos o direito do paciente de decidir livremente e Aqui usamos todos os recursos disponíveis alinhada com valores, desejos, preferências e objetivos do paciente.
Os esforços para a conciliação entre autonomia e solidariedade, para a transigência entre autonomia e paternalismo fraco e para a judiciosa interpretação de prudência e de zelo em face de inevitáveis ambiguidades, evidenciam que enquadramentos da Medicina em “molduras morais” colidem com diversidades de visão da responsabilidade profissional sobre indeterminações de normas gerais e sobre tolerância ao contraditório para o encontro de um equilíbrio.
É desejável que a ideia de suporte como solidariedade motivada pela preocupação com a proteção ao vulnerável combinada ao respeito à autonomia possa se materializar nos diversificados entornos das tomadas de decisão. Neste contexto, o suporte conecta-se ao continuum em carrossel A consentir (recomendação médica)- consentimento- O consentido (conduta decidida)- Quadro.