Quem ama exagera. Sempre! É exagero explicável. Quem ama conhece melhor e assim ultrapassa a apresentação. Quem ama compreende melhor e assim excede na medida convencional.
Interessado em Ética, fui por isso selecionado como representante do InCor na recém constituída Comissão de Bioética do Hospital das Clínicas da FMUSP. O encontro foi cativante. Eclodiu uma clareza de sentimento, aconteceu aquela reação entre duas substâncias transformadora numa única e nunca mais deixei a companhia da Ética da vida.
Após a aposentadoria administrativa das coisas da “válvula cardíaca” passei a dedicar-me mais intensamente ao “abre-fecha” dos assuntos conectados à Bioética também cheios de ruídos no sentido mais figurado. Estou convivendo horas a mais com a Bioética em vários ambientes. Estamos juntos ora na literatura, ora na beira do leito, ora por pensar nela. Pela identificação, tornou-se uma extensão da minha vivência profissional. Ela me estimula, me desafia, me completa. Ao mesmo tempo, a Bioética me ajuda a estimular a interdisciplinaridade, a desafiar conflitos e a completar a visão técnico-científica com o respeito à condição humana.
Uma das vantagens da boa relação com a Bioética foi dar reforço a dois comportamentos profissionais que trouxe bem guardadinho porque altamente recomendado, da minha formação na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil (1937-1965) – quando entrei- e da Universidade Federal do Rio de Janeiro- quando saí. Lá convivi com uma geração de professores que estava em processo de mudança em relação ao contato direto com o estudante, combinado menos autoritarismo característico de catedráticos e mais demonstração de prazer como fonte de real aprendizado. Destaco o corpo docente da Primeira Clínica Médica do Professor Clementino Fraga Filho (1917-2016) como emissor do significado do ceticismo e autocrítica para o exercício profissional.
Desde então introjetei o valor de acreditar em verdades baseadas em evidências e duvidar das mesmas como certeza e, assim, aplicar o benefício requer atenção a desvios do bem previsto. Foi-me adjetivado como o seu lado benigno. Ao longo dos anos, percebi a Bioética recomendando que as diversas formas de progresso da Medicina, sustentadas por técnicas e tecnologia não presumidas no tempo da minha formatura, exigiam a vigilância do que foi me apresentado como ceticismo benigno. Por outro lado, avivei com a Bioética que cada atendimento ao paciente por mais que o médico desenvolva os padrões de excelência é sempre uma nova lição. Em decorrência, é oportunidade renovada para apreciação pró-ativa visando à consolidação ou ao reparo. A autocrítica, então adjetivada como saudável, funciona como um passo a passo, matéria prima importante da prudência, um dos pilares da Ética e motor do ponto de equilíbrio entre benefício e segurança.
A Bioética promoveu o reencontro de um clima de enaltecimento do ceticismo benigno e da autocrítica saudável, quando estava sujeito ao efeito de manada de excesso de racionalidade que faz arrogar a si um paternalismo já inaplicável. Ela redisse-me a valia do uso de lápis e de borracha para o encontro do melhor traço profissional, caso a caso. Algo como conceber no atacado e realizar no varejo. A Bioética convenceu-me do seu poder de facilitação para que o ser médico ético se comporte como um retratista do paciente https://bioamigo.com.br/771/. É um risco aqui, um apagamento ali, a composição de uma individualização vantajosa para todos, quer no aspecto clínico, quer no humano.
Recentemente, talvez pelo exagero com que faço publicidade da Bioética movido pela paixão, recebi alerta de um amigo, sobre a possibilidade de gerar a ideia de misticismo ou sobrenatural, distante da real praticidade da Bioética. Foi bem vindo, levando-me a exercitar o ceticismo benigno e a autocrítica saudável, levando-me a uma visão mais ampla quando nos dão a oportunidade de subir aos ombros do gigante – a amizade no caso-, seguindo o pensamento de Isaac Newton (1643-1727).
Claro, há que se ter cuidado para que a Bioética não seja exposta como um produto fetichista que dá estilo a uma utilização coletiva como uma roupa de marca. Ela presta-se a agregar atenção ao caráter social da Medicina como um serviço, uma prestação de serviço com relações de interesse mergulhadas em incertezas e em imprevisibilidades e desejosa de satisfazer às necessidades clínicas de um paciente atual e de conjecturar sobre impactos de inovações tão entusiastas quanto temerárias no futuro da humanidade.
Bioética, um amor para chamar de bem. Estou suficientemente consciente, porém, que ela não deve ser vista como um bem em si, abstrato, inserido numa idealidade, numa crença de panaceia, que “tudo resolve”. Pelo contrário, a vejo como um bem produtivo que acumula saber interdisciplinar e o distribui de maneira processada para atender a demandas práticas.