3834

PUBLICAÇÕES DESDE 2014

310- Bioética, Testemunha de Jeová, fato, norma e valor

 A relação médico-paciente convive com fatos. Há os relacionados diretamente à enfermidade em si, como sintomas e há os indiretos como a adversidade a fármacos.

Atitudes manifestam-se em reação aos fatos, movimentadas no contexto dos valores profissionais e pessoais- presentes ou ausentes- e na dimensão das normas orientadoras que incluem aspectos administrativos, éticos e legais.

Pode-se dizer que valores e normas “não jurídicas” aguardam os fatos e energizam- ou não- a atenção aos mesmos na beira do leito.

A Bioética contribui para refletir sobre a dinâmica de valores e a pertinência das normas perante a especificidade dos fatos. Ela auxilia a aplicação ajustada de procedimentos médicos.

Nem sempre os valores da Ética médica desenhados no Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina se superpõem a valores de pacientes e/ou estão afinados com regras criadas pela sociedade ou por grupos de pessoas. Há uma movimentação constante da inter-relação fato/norma/valor, acréscimos e revogações sobre o profissionalismo ocorrem, além das sugestões sobre posicionamento do médico que emperram num contraditório, especialmente nos casos de emergência ou urgência médica.

Na questão da recusa de paciente Testemunha de Jeová a ser submetido à transfusão de sangue ligada a valor religioso, o médico pode se sentir num labirinto, ver-se desassossegado na busca de uma saída que possa conciliar benefício à vida e não malefício à pessoa.

Normas incluem a Resolução CFM 1021/1988: Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo ao seu Código de Ética Médica, se houver iminente perigo de vida, praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis. Esta orientação afina-se com a formação do médico para salvar vidas desde Hipócrates e com o princípio fundamental da Constituição brasileira que assevera que a vida é inviolável no caput do art. , entendido que o Estado pátrio é protetor da vida.

Recentemente, o Ministério Público Federal expediu a Recomendação n.18, de 5 de setembro de 2016, em que recomenda ao Conselho Federal de Medicina revogar a Resolução 1021/1988 sob alegação de violação de direitos humanos fundamentais como a liberdade de consciência, liberdade de religião, intimidade, privacidade, integridade psíquica e física, autonomia e ao consentimento prévio, livre e informado. Assim, não bastaria argumentar que o valor vida prevalece sobre todos os demais para transfundir sangue em paciente Testemunha de Jeová.

Ainda em relação a normas acerca de fatos médicos e valores do paciente, existe a Diretiva Antecipada de Vontade (RESOLUÇÃO CFM nº 1.995/2012), documento que contém o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade. Deverá prevalecer sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.  Uma interpretação decorrente dessa Resolução é que a vontade que vale para uma situação de incapacidade também deveria valer para a situação de capacidade, agora com manifestação “ao vivo”.

As Diretrizes clínicas dispõem sobre benefício e sobre segurança da aplicação de métodos técnico-científicos como orientador moderno de condutas sustentadas pelo saber médico ético perante fatos das enfermidades. Por seus princípios, cada aplicação merece um raciocínio clínico sobre a conveniência de ajustes em função de aspectos clínicos específicos e uma análise sofre influências da disponibilidade de recursos. Contudo, as Diretrizes clínicas não cuidam da vontade do paciente a respeito da recepção de suas recomendações.

Neste contexto, a própria formação do médico brasileiro, graduação e pós-graduação (Residência médica) exibe um forte desnível do interesse pelas questões técnicas da Medicina (acima) e de valores dos pacientes (abaixo). De modo reducionista, pode-se dizer que o estudante de Medicina/Residente de Medicina aprende a fazer e não a não fazer o que seria indicado como prudência e zelo pelo paciente. Um avanço no sentido da validade ética do não fazer é a compreensão da ortotanásia, a aceitação do conceito de futilidade terapêutica em substituição ao da obstinação terapêutica  e a consolidação da noção de cuidados paliativos para a terminalidade da vida.

Estamos numa fase de captação de sugestões para elaborar uma atualização do Código de Ética Médica. Creio que a tradicional ressalva à obtenção do consentimento do paciente salvo em iminente risco de morte  deverá permanecer. Assim, um caso de paciente Testemunha de Jeová que tenha sido conduzido com todo o respeito aos valores da pessoa, contudo, em que o fato prevalente é a piora da condição clínica que atinge um prognóstico de iminente risco de morte, deve ser guiada por qual norma? Até que ponto a autonomia do médico valeria contra a vontade expressa do paciente? Unanimidade de pensamento impossível.

Nesta questão da autonomia do médico, ele pode hierarquizar entre prudência e zelo. A prudência está contida no processo de tomada de decisão e o médico considera o futuro. No caso de paciente Testemunha de Jeová, torna-se essencial pressupor uma eventual necessidade “salva-vida” evolutiva da transfusão de sangue. Na rejeição a este item no ato de consentimento do paciente, o médico exerceria a sua liberdade de consciência, antecipando a sua negativa a ter de deixar o paciente morrer sem a aplicação de todos os recursos a seu alcance.

Já o zelo está ligado ao momento da execução, portanto, a preocupação só teria início quando houvesse o fato. É ordenação de conduta para a qual a estatística costuma dar tranquilidade, mas não é uma vacina, não garante. Aliás, não sei se há disponibilidade de registros de casos de pacientes Testemunha de Jeová que vieram a falecer pela não aplicação de transfusão de sangue. O que se conhece é sobre a realização da transfusão de sangue, até por ordem judicial, como acontece, inclusive com menores de idade.

A questão Testemunha de Jeová ilustra as diversidades e complexidades com que a Bioética se depara no cotidiano, com difícil afirmação de conduta respeitosa da tridimensionalidade fato/norma/valor.

Os quadros mostram conclusões da tese de doutorado Bioética e crença religiosa: estudo da relação médico-paciente Testemunha de Jeová com potencial risco de transfusão de sangue de autoria de Graziela Chehaibar Zlotnik (orientador Max Grinberg) na área de conhecimento da Cardiologia apresentada e defendida na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em 2010.

tj
Crédito: http://www.scielo.br/pdf/abc/v97n3/19.pdf
tj11
Crédito: http://www.scielo.br/pdf/abc/v97n3/19.pdf

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES

fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts
set0 Posts
out0 Posts
nov0 Posts
dez0 Posts
jan0 Posts
fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts

fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts
set0 Posts
out0 Posts
nov0 Posts
dez0 Posts
jan0 Posts
fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts