A mente não é um local na anatomia do cérebro. A mente representa um processo e, ninguém duvida, sem limites. A criatividade é um produto da mente. O gatilho criativo é um encontro – de si para si ou com o exterior-, que origina uma intensidade de envolvimento – um entusiasmo pela vitalidade- e atinge um inter-relacionamento.
A Medicina não dispensa a criatividade nos processos mentais exigíveis para o exercício da assistência, pesquisa e docência. Ela necessita estar articulada com a responsabilidade do médico para com paciente no manejo de princípios, normas e métodos visando ao benefício, não malefício e consentimento.
Benefício é expansão, não malefício (segurança) é limite, consentimento admite ambos. A consciência do poder da criatividade faz com que expansão e limite estejam em permanente interação. Em Medicina, é essencial considerar a tensão entre imaginação “livre e expansora” e forma “guardiã da ética e da legalidade”. Perceber, pensar, pesquisar, publicar, partilhar, prescrever, praticar, progredir, precaver, permanecer, compõem 10 P representativos da inovação baseada em evidência científica que se torna rotina baseada na comprovação clínica pelo tempo.
Na nossa contemporaneidade, evidência científica é palavra de ordem representativa do binômio expansão/imaginação e limite/forma. Ela não está sozinha, mas tem um lugar de alto destaque na beira do leito. A companhia com a experiência de fato vivenciada, com a observação (pró-expansão) evolutiva (pró-limitação), dá completitude entre tradicional e inovação e desestimula indevidas censuras de olhares enviesados.
No passado, a fértil imaginação pré-científica sustentou incursões tão impetuosas quanto sombrias a propósito de Medicina. O mecônio foi afirmado como o agente que induzia ao “sono” do feto, animais que hibernam foram considerados rica fonte para o desenvolvimento de um fármaco indutor do sono, sanguessugas tornaram-se bem alimentadas do sangue humano “conspurcado”. O exame das fezes da criança já foi indicador “preciso” de diagnósticos e de correções alimentares por pediatras que ficaram conhecidos como “admiradores das fezes”, exemplo que já direciona para uma integração entre imaginação e forma.
Muito tempo se passou até que o autoritário e silenciador “magister dixit” fosse criticado pela Medicina baseada em evidências, para o bem da potência do ser médico. Muito se realiza hoje em nome de um “magister apud evidentia”, pressuposto de boa Medicina, muito embora não faltem lacunas de inexistência de evidências pró-utilidade/eficácia que, na medida do possível são ocupadas pelo senso clínico e pela falta de evidências anti-utilidade/anti-eficácia.
Uma atualidade da xifopagia entre imaginação e forma numa plataforma de criatividade e inovação respeitosa à Ética e ao Direito insere-se na Pesquisa clínica. Um encontro da dúvida, da necessidade e da intenção de expandir conhecimento e disponibilidades numa forma de vislumbrar tanto o benefício quanto uma aceitável excedência a inevitável ocorrência de malefícios. A animação de uma imagem que percorre o cérebro nomeada como ideia/pensamento/racional/concepção/objetivo principal em busca de revelações científicas formatadas por uma sequência de encontros humanos e técnicos, filtrados pela moral e validados pela ética.
Toda esta movimentação da mente precisa ser transformada num nome, o que já foi dito por observadores argutos, o veículo que faz chegar a inovação “com todas as letras” no destino pretendido. Assim como o bebê ganha um nome ao nascer, projetos de pesquisa ganham títulos-acrônimos que facilitam a sua promoção científica, quase um apelido que dá sensação de intimidade, enquanto que fármacos e técnicas legitimadas tornam-se “cidadãs” universais da ciência pelo batismo. Lasix (LAsts for SIX-hours) e arteriografia são emblemáticos neste contexto. Desta forma, fica facilitado o encontro entre concepção, nascimento e desenvolvimento, que firma critérios para uma prescrição, uma aplicação, uma objeção.
A mente criativa e crítica do médico que aplica a inovação na beira do leito, ao mesmo tempo que se comporta de modo translacional ao do pesquisador clínico, testemunha os realísticos encontros na beira do leito, a vida real dos métodos. É o efeito individualizado do lasix no portador de cardiopatia, diabético, edemaciado e hipovolêmico, bem como a desejável informação da arteriografia cotejada com a conveniência do uso de contraste pelo grau expressivo de insuficiência renal.
A mente necessita, então, ligar o nome de qualquer inovação- no caminho da consagração como rotina- ao translacional do ajuste, ou seja “traduzir” a conclusão da pesquisa clínica para o dialeto da individualidade daquele paciente. É ato criativo, síntese de tese com antítese, responsabilidade do médico. Muitas vezes, o médico se vê necessitado de se exigir com coragem criativa suficiente e proporcional para realizar mudanças na forma de relacionamento com diretrizes clínicas. É a consciência do compromisso de ser um profissional apesar da incertezas.
As diretrizes clínicas são eficientes para organizar o estado da arte, separa o joio do trigo de modo atualizado e competente. Elas não são, contudo, algemas, elas são bússolas. Considerando a mente, elas não devem exercer a cleptocracia, ou seja um poder totalitário sobre escolhas pelo roubo da mente do médico. Este deve compreender que faz parte da ética evitar a sedução narcísica de sempre refletir uma imagem da diretriz, não importa o senso direcionado para os ajustes.
É imprescindível que fatos do paciente enquadrem-se em nomes clínicos, num jargão profissional. Eis necessários nome de sintoma, nome de síndrome, nome de exame complementar, nome de diagnóstico, nome de tratamento, nome de prevenção.
Assim, uma queixa importante para o paciente sem um nome tem alta chance de ficar perdida pela “falta de contribuição” na análise do médico, desaparece do processo mental do raciocínio clínico. A história da Medicina é uma sucessão de nomeação de fatos e, ter ultimamente escasseado, não significa esgotamento. Nenhum médico ignora que quando sintomas não definem uma circunstância clínica, muitas vezes, passam a ser reunidos como equivalentes, como pertencentes a uma atipia da enfermidade “de livro”, pois não se pode deixar de dar um nome conhecido/orientador.
Em suma, a mente do médico, embora não possa ser metrificada, admite uma enorme dimensão de memorização, crença, pensamento, incerteza, probabilidade, compaixão, receio, esperança, etc.., etc… Ela não é um objeto sólido, mas corre o risco de resultar liquefeita ou evaporada, sofrer desgastes com o tempo, seguir por bons ou por maus caminhos.
As conveniências a respeito da materialização do mente do profissional da saúde é tema de alto interesse da Bioética da Beira do leito.