A pergunta veio como uma flecha certeira atingindo a maçã sobre a cabeça que a equilibrara por 45 minutos durante a aula: ” – Professor, existe negligência do médico em ausência de consentimento do paciente?”.
No fundo da sala lá estava ele, o perguntador, com o arco “ainda fumegando” na mão, aquele semblante de quem inteligentemente embaraçou o mestre e motiva o holofote pelos próximos minutos. Ao mesmo tempo, a sensação da gratificação, houvera atenção à exposição.
Uma busca “google” mental e uma “whatsapp” estruturação para resposta, naquela fração de segundos que pode fazer a diferença entre ver a plateia num balançar vertical ou horizontal da cabeça, aquela linguagem não verbal que os palestrantes tanto apreciam quanto temem, veio o chute – na sua acepção real e não figurada- de primeira, pretendendo que fosse indefensável (no jargão futebolístico), contudo defensável (intelectualmente).
Vamos a ele. Negligência é não fazer o que foi finalizado e autorizado no processo de tomada de decisão. Desta maneira, o zelo como antônimo de negligência subentende a realização do recomendado pelo médico/equipe que foi consentido pelo paciente, após ajustes ou não. Ipso facto, a avaliação se teria havido ou não negligência não deve ser alocada apenas numa eventual não realização de uma indicação criteriosa de método diagnóstico e/ou terapêutico, mas no esclarecimento complementar sobre se houve a aposição do carimbo CONSENTIDO.
É da ética médica brasileira o uso de um entre vírgulas relevante: salvo em iminente risco de morte. Esta ressalva alerta que não há obrigatoriedade de consentimento pelo paciente/representante em situações de emergência. Em decorrência, poderá sim haver a interpretação de negligência somente pela análise do que técnico e cientificamente deveria ter sido feito e não foi, causado pelo profissional da saúde e/ou instituição da saúde e/ou sistema de saúde, vale dizer em ausência de uma negação pelo paciente/familiar/representante. Repito, em situação de emergência.
Mas esta obrigação moral de evitar a morte iminente como na subitaneidade de um acontecimento mórbido teria alguma exceção? Sim, ela existe, também referida ao (não) consentimento, não como resultado de um processo dialógico de momento sobre prós e contras, mas sobre confronto adrede acontecido entre ciência aplicável pelo médico e preferências, desejos, objetivos e valores do paciente. Refiro-me a uma decisão de não consentimento amadurecida por um tempo bem maior do que o disponível na beira do leito, a convicção da pessoa que não autoriza tais e tais procedimentos, documentada em papel, uma prática recente entre nós chamada de diretivas antecipadas de vontade, também de testamento vital registrada em cartório. Um nome, uma realidade, uma responsabilidade.
Esta a priori participação do cidadão, antes de ser aquele paciente, costuma ser provocada pela existência de alguma preocupação com a saúde, a sensação de deterioração, a ideia de sofrimento inaceitável – ser internado em UTI, realizar diálise, ser intubado para assistência ventilatória. Pela novidade do documento “anti-negligência”, há certas dificuldades do médico em lidar com este testamento “não material”, aceitar sua validade ética e legal – sem dúvida existente-, estimuladas por uma apreciação moral que está diretamente conectada à visão profissional de prognóstico.
“- Mas se fizermos, há boa chance da evolução favorável!” pensa e verbaliza o médico, com o seu interior angustiado por uma sensação de estar sendo negligente, que poderia fazer com sucesso, pelo menos num ou mais quesitos da enfermidade, uma contribuição de boa fé. É difícil mesmo explicar que a negligência com a profissão que sente não significa infringência ética ou legal com paciente (visão difusa), pois inexiste negligência com o paciente em questão (visão individual).
No cotidiano, existe uma zona cinzenta de alta relevância prática. Ela representa uma dúvida sobre a abrangência do consentimento para fazer e as eventuais adversidades do ato praticado.
“- Senhor paciente, recomendo que seja retirada a vesícula biliar cheia de cálculos”.
“- Doutor, estou de acordo, correrei riscos?”
“- Não posso dizer que está isento de algum risco, mas a operação será feita sem cortes, só quatro furinhos na barriga, costuma ir muito bem”.
“-Doutor, então vamos fazer”.
Cabe, então, a pergunta: caso haja uma intercorrência com influência expressiva sobre o prognóstico, como infecção ou hemorragia, o médico deve entender que o consentimento foi dado para qualquer extensão do procedimento? Ou terá que renová-lo para cada conduta adicional embora conectada à intervenção?
Nesta última situação, caberia no pré-procedimento enumerar adversidades qual uma bula de remédio e solicitar consentimento por consentimento? Internação em UTI? Sim ou não. Uso de antibiótico por período prolongado? Sim ou não? Transfusão de sangue? Sim ou não. Assustador, mas eticamente justificável.
Pessoal, cada caso é um caso, mas vocês precisam elaborar uma rotina que mais se ajuste aos seus conceitos de Medicina, responsabilidade profissional, autonomia do paciente, qualidade de vida e sobrevivência. O quantum satis de bula é sempre uma discussão em aberto.
A conclusão que, na maior parte das circunstâncias, negligência inexiste sem o consentimento prévio do que não foi feito foi bem recebida pela plateia, haja vista a verticalidade do balançar das cabeças. Evidentemente, houve as exceções daqueles de cabeça baixa que não desejavam negligenciar com seus seguidores em alguma rede social e atacavam impiedosamente o teclado do smartphone. Oxalá esta excepcional habilidade de digitação possa de alguma maneira ser transferida para quando forem manejar pacientes.
Mal havia sido colocado o ponto final, zuniu outra flecha desde o mesmo local, que na falta da maçã já previamente acertada, atingiu o crachá:
“- Professor, o senhor então está dizendo que o médico tem que aceitar recusas do paciente que estejam escritas neste testamento vital e que irão contribuir num curto prazo para a sua morte, ou seja, o médico fica incapacitado de empregar todos os meios disponíveis da Medicina?”.
A pronta resposta foi: “- Sim, trata-se de uma sinalização para a aplicação de cuidados paliativos… “
– ” – Então, prosseguiu o Guilherme Tell de plantão, por este mesmo raciocínio, porque que a eutanásia é mal vista?”.
A busca “google” na mente do professor foi recolhendo termos como decorrência natural, precipitação da morte, vieses morais, posicionamentos religiosos, cultura e tradição, tudo junto e misturado. Ele percebeu a dificuldade que teria para emitir uma comunicação “whatsapp” esclarecedora. Olhou para o relógio e disse com aquela expressão de pena: ” – O próximo professor já chegou, responderei na próxima aula… Ufa!..”
Baixa o pano rápido, o mais rápido que puder…