Poder exercer a capacidade técnica, social e psicológica para obter informações e as utilizar para tomar decisões independentes sobre sua própria vida e saúde não era garantido ao paciente até há poucas décadas. Como força de lei, no estado de São Paulo, passou a ser direito dos usuários dos serviços de saúde consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados (lei 10241/99).
O termo autonomia foi oficialmente integrado à ética médica brasileira no Código de 1988. O início de uma influência marcante na relação médico-paciente, uma semeadura em único artigo. A inserção histórica deu-se no capítulo Princípios fundamentais, portanto, estava voltada para a atuação do médico: Art. 7° – O médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente.
Desde então, o princípio da autonomia expandiu-se e se consolidou na beira do leito. Um realce foi o ganho de status de direito do paciente de consentir ou não com a submissão ao estado da arte da Medicina proposto pelo médico. A consulta ficou mais perto da sua origem etimológica e distanciou o paciente da obrigação inequívoca do cumprimento efetivo de métodos diagnósticos e terapêuticos. Ligado a uma visão de direito constitucional, o iminente risco de morte evitável e compatível com sobrevida com qualidade de vida tornou-se única negação ética a este direito do paciente. A exceção aplica-se mais comumente em situações de emergência médica, combinando-se com o entendimento de prudência e de zelo na circunstância.
Poucas décadas depois da introdução deste novo olhar na relação médico-paciente que reduziu – pelo menos teoricamente- níveis de empoderamento entre seres humanos – o que cuida e o que é cuidado-, vivemos tempos de perspectiva futurista destacada para um potencial de melhoria de capacidades humanas pela manipulação genética na concepção – indivíduos mais inteligentes, mais bonitos, mais saudáveis, mais longevos, atletas de ponta. Desejo dos pais, desafio à ciência, motivação acadêmica de cientistas, corre-se atrás do financiamento para pesquisa ao mesmo tempo em que corre solta a criatividade. Eugenia é tema polêmico xifópago com apreensão de ordem moral. O século XX coleciona exemplos tristes. Assim como uma intervenção altamente alertadora a respeito de pretensões para combinações de genes. Registra a história que a bailarina Dora Angela Duncanon (Isadora Duncan -1877-1927) sugeriu ao escritor George Bernard Shaw (1856-1950) que tivessem um filho. Após ouvir “… Imagine, Sr. Shaw, como seria um filho nosso com a sua inteligência e a minha beleza...”, o famosos irlandês respondeu de imediato “… ” … E se tiver a minha beleza e a sua inteligência?…”.
Neste contexto do desejo tão entusiasmante quanto preocupante, desenvolve-se a apreciação sobre uma melhoria também da eficácia da autonomia pela manipulação genética. Imagino que poderia ser algo como um efeito congênito antecipador à necessidade de psicoterapia no adulto. Mais ser autêntico, mais aceitar-se, mais ajustado socialmente, etc…etc…
Análises já publicadas ponderam sobre o quanto haveria de autenticidade em desejos e disposições “eugênicas”, se projetos de vida influenciados pela melhoria seriam expressão de real liberdade de escolher por si próprio. A beleza da ocorrência de teses prontamente questionadas por antíteses, pretendendo sinceramente sínteses.
A visão otimista argumenta que a melhoria de certas capacidades psicológicas associadas à manipulação genética poderia beneficiar a autonomia na medida em que removeria obstáculos para a aplicação de genuína vontade (desejo+movimento). Em decorrência, haveria maior coerência entre os chamados desejos de primeira ordem – alimentar-se, dormir, ter sucesso, não sentir dor- e os de segunda ordem- desejar certos desejos-, beneficiando a fidedignidade de julgamentos, a expressão de preferências e a manifestação de objetivos. Talvez um sim mais subordinado do que resignado.
Focando na beira do leito, será que a melhoria genética poderia dar mais veracidade à manifestação de superposição ou não do paciente à “cabeça de médico” no ato do consentimento? Haveria uma maior conscientização sobre a necessidade de esclarecimentos mais aprofundados? Voltaria o paternalismo por inibições à livre escolha, por exemplo, numa situação onde o paciente ficaria refém do grande desejo de manter determinada melhoria com que foi agraciado pela manipulação genética? Relembremos Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): Todos os pensamentos verdadeiramente sábios têm sido pensados por centenas de vezes; mas para fazê-los verdadeiramente nossos, precisamos pensar neles várias vezes e honestamente, até que eles se alinhem com nossa experiência pessoal.
O interesse da Bioética da Beira do leito por este tema futurista está no aproveitamento de nuances do qualificado cotejamento dos argumentos que justificam cada lado do não alinhamento de pontos de vista. A revisão crítica e comparativa sobre abordagens filosóficas sobre autonomia que exige dos especialistas passar inovações técnico-científicas por filtros do humanismo facilita o profissional da saúde que cuida de pacientes com apego à Bioética, todavia sem maior profundidade em conhecimentos de filosofia, a captar pistas úteis para aplicação na beira do leito atual.
O profissional da saúde atuante sabe da heterogeneidade com que ocorre o processo de consentimento do paciente à recomendação médica. Estado de competência lógica, impacto de falsas crenças, análise crítica dos prós e contras, momento de vida mais expressivo ou mais depressivo, fatores sociais e financeiros, nível de confiança no atendimento, além do grau de sofrimento constituem matérias-prima para a manifestação de um sim ou de um não temporário ou definitivo.
O mundo real -na minha experiência de cerca de 50 anos de beira do leito- é o do paciente majoritariamente concordante com a orientação de conduta na frente do médico – se ele vai seguir a receita em casa é outro assunto- para recomendações mais invasivas. Oferecer ao paciente o direito à autonomia e obter um consentimento do tipo o senhor é que é doutor, que sabe o que é preciso ou do tipo “mais trabalhado” por insistência argumentativa do médico, não coercitiva contudo – que já estaria classificável como paternalismo fraco-, ambos parecem harmonizar a visão de não violação da autonomia, fortemente apregoada pela Bioética. É comportamento ético que a rotina leva para as profundezas da consciência.
A maior contribuição do interesse pela possibilidade ou não de melhoria da eficácia da autonomia associada à manipulação genética está no manejo do não consentimento que parece inflexível, não que se deseje tocar a flauta de encantamento da ciência, mas no intuito de entender motivos de resistências e analisá-los com boa comunicação com o paciente. O médico ao se tornar paciente percebe em ponto maior o quanto inseguranças conspiram contra a recepção de benefícios.
Lavagem cerebral e manipulação psicológica que exercem modificações não racionais e não consensuais nos objetivos e desejos do paciente, fraude, que cria falsas expectativas e carência de autoconsciência, que dificulta atender aos próprios desejos e interesses incluem-se em fatores propiciadores de violação ou de inibição da autonomia. O quanto eles poderiam resultar influenciados pela manipulação genética sobre a autonomia é o que precisa ser bem conjecturado e alvo de pesquisas.
A Bioética da Beira do leito reforça que a noção deste quarteto mau intercessor deve estar tanto excluído quanto incluído na relação médico-paciente da atualidade. Excluído no sentido do médico assistente agente da violência, incluído como o médico agente atento do reconhecimento da influência de terceiros – até outros médicos, infelizmente-, verificação que proporciona alguma chance de reversão da anti- saudável manipulação.
Combinações genéticas poderão influenciar positivamente a capacidade de tomar decisões com autenticidade, todavia, todo esforço “natural” para melhorar o exercício ético e legal do consentimento genuíno na relação médico-paciente deve ser estimulado.