Quem milita na Bioética testemunha a heterogeneidade de sua apreciação por profissionais da área da saúde e pela sociedade em geral. Numa ampla maioria mesclam-se os que não sabem do que ela trata, os que têm uma noção superficial e não a valoriza e os têm uma interpretação enviesada e a desvaloriza. Uma minoria têm-na fortemente incorporada a sua vida profissional.
A Bioética é nova, razão de desconhecimentos sobre os seus objetivos. Seu berço nobre indica o nascimento a partir de sentimentos de insubmissão a práticas desumanas, criminosas mesmo, realizadas em nome da Medicina e de preocupações com perspectivas do progresso da Medicina desalinhadas com a condição humana. Uma ponte para o futuro foi um título feliz do livro pioneiro de van Rensselaer Potter (1911-2001), o Pai da Bioética moderna.
A Bioética expandiu-se em ambientes selecionados. Segundo a Unesco, ela passou à condição de legítima ativista das questões de ética suscitadas pela medicina, pelas ciências da vida e pelas tecnologias que lhes estão associadas, aplicadas aos seres humanos, tendo em conta as suas dimensões social, jurídica e ambiental. A promoção do encontro no terreno da consciência moral da crença na humanidade com a dúvida sobre seus comportamentos.
Como médico, habitando o ecossistema da beira do leito, compreendi que a Bioética adquiriu rapidamente um status de fórum de atenção, reflexão, reação e proposição a respeito de (in)adequações éticas e legais. Sou testemunha que não lhe faltam missões na beira do leito nutridas pelo respeito a objetivos virtuosos, que a faz “mexer em vespeiros”, lidar com diversidades, intolerâncias e autoritarismos, haver-se com crenças, dogmas, tabus e preconceitos.
Esta visão da beira do leito assistencial é todavia muito seletiva, embora inspiradora. A Bioética admite um olhar bem mais amplo. Aquele que transcende o seu espaço final (beira do leito prudente e zelosa) de relação ciências da saúde- profissional da saúde-paciente. Ela precisa enxergar a validade humana de infinitos inícios (ensaios em amplos sentidos), contribuir para distinguir o bom e o mau, o bem e o mal para a condição humana de ineditismos criativos, de métodos idealizados e desenvolvidos pela reunião da fertilidade do pensamento humano e da capacidade em diversificar inovações técnico-científicas. Neste contexto, a Bioética rejeita fortemente o pensamento que se você pode resolver o seu problema, porque, então, se preocupar? Se, ao contrário, não puder resolvê-lo, então qual é a utilidade da preocupação? Em outras palavras, a Bioética transita pela coragem criativa, exercendo análise crítica sobre teses e antíteses a respeito de persistências e de mudanças.
Numa velocidade espantosa, novas evidências nosológicas, diagnósticas, terapêuticas, prognósticas, novas ideias que acrescem um grãozinho ou que revolucionam o conhecimento, novas disponibilidades tecnológicas impensáveis pelos mais criativos ficcionistas do passado, bombardeiam o mundo das ciências da saúde. Cada projeto de inovação provoca expectativas alvissareiras de benefício e intranquilidades sobre segurança individual e coletiva. Muitas delas são vistas como ameaças e mesmo transformadoras da humanidade. A Bioética ajuda a perceber destinos dos caminhos do labirinto de atitudes, objetivos e valores.
Aspecto de interesse da Bioética, é a continuidade do acompanhamento de perto mesmo após a validação de método inovador, aceito como útil e eficaz e universalizado, no que se chama de fase de mercado. Parte-se do princípio que o tempo associado a novas dimensões do uso universalizado, não somente delineará o nível do benefício, como também fará enxergar detalhes até então despercebidos e que podem trazer alertas sobre a segurança. Relevantes justificativas para constante observação crítica e maior profundidade de imersão no método. Inclui a dificuldade do reconhecimento de eventuais danos provocados pelo método por serem de natureza subclínica e terem maior expressão clínica tardiamente. E também, em caso de danos imediatos, a possibilidade de permitirem uma segura comprovação de relação causa e efeito.
Uma ilustração prática desta teorização surge no âmbito de tecnologias de reprodução assistida, rotinas éticas e legais que acumulam realizações de sucesso na concepção com expectativa de perfeito desenvolvimento do concepto.
Recentemente, o editor chefe da revista human reprodution lançou um editorial tão curioso quanto inquietante. http://humrep.oxfordjournals.org/content/early/2016/07/05/humrep.dew129.full.pdf+html. Ele comenta que a composição da manteiga de amendoim – por ele apreciada- é conhecida pelos consumidores, inclusive em seus pormenores, por força de lei. Mas que, ao contrário, a composição quantitativa dos meios de cultura utilizados em fertilização in vitro não são declarados, ou são de modo incompleto, havendo grande variação comprovada por pesquisas específicas.
A questão inquietante é que alguns pesquisadores sugeriram que a constituição do meio de cultura utilizado no trato artificial dos embriões no laboratório pré-implante têm uma potencialidade de impacto na naturalidade dos mesmos. De fato, há ruídos na literatura sobre influências no peso ao nascer e sobre efeitos cardiovasculares e metabólicos na vida adulta, ligados ou não a baixo peso corporal no nascimento.
http://humrep.oxfordjournals.org/content/early/2016/07/04/humrep.dew157.full.
Veracidade ou não, o certo é que assim caminha a ciência comprometida com a força da verdade e a consciência da equivocidade. A Bioética traz iluminação à necessidade de estudos reavaliadores objetivando atualizações sobre benefícios e danos à medida que percepções adquirem maior clareza, como este alerta sobre as exatas composições dos meios de cultura utilizados nas técnicas de reprodução assistida.
Por isso, a Bioética engaja-se nesta necessidade de um rótulo completo nestes meios de cultura, justificados e validados, supervisionados por órgão regulatório, para perfeito conhecimento em nome dos “consumidores” ainda numa fase de incapacidade máxima neste primeiro ambiente de luta pela vida. É tarefa que pode evitar atuações sobre anomalias congênitas na beira do leito de amanhã!