O médico costuma estar atento a novidades validadas para a beira do leito e a perspectivas alvissareiras para um futuro próximo. Pelo profissionalismo, ele vivencia “Medicinas” sucessivas distinguidas pelos inevitáveis aperfeiçoamentos técnico-científicos. A clássica analogia com mesmo rio, água diferente.
Este renovado médico pela experiência própria e coletiva, pela curiosidade do conhecimento, pela vontade de desvendar novos horizontes, pela busca incessante de novas evidências, contudo, nunca desatrela do passado. Ele precisa considerar superioridades e não inferioridades emergentes sendo fiel à afirmação do dinamarquês Prêmio Nobel de Física 1922 Niels Henrick David Bohr (1885-1962): o oposto de uma verdade profunda pode ser outra verdade profunda.
Não faltam verdades profundas na história recente e remota da Medicina com merecimento para diálogos pontos de referência em busca da verdade no campo do benefício, da segurança, da prudência, e do zelo.
Do passado mais longínquo, temos a voz ativa do exame clínico, do raciocínio clínico, do olho clínico, das correlações anatomoclínicas e, especialmente, da relação médico-paciente. Da modernidade, temos a transdisciplinaridade que facilita convergir atualizações e inovações para a beira do leito, a valorização do translacional e a onipresença da tecnologia (bio ou não). Do encontro da ciência com a engenharia junto com a explosão de atitudes de medicalização da vida surgiu a judicialização da beira do leito, nem sempre preparada para responder a desafios a direitos humanos na área da saúde. Neste verdadeiro jogo de autoridades, não pode ser esquecido que a beira do leito é habitat de organismos humanos cuidados por mãos humanas.
A Bioética facilita a ligação histórica humanizada. A Bioética faz-se presente na ponte de continuidade como fator de cautela para evitar empoderamento de nova descoberta técnico-científica com descontrole entendido como desumano. A Bioética valoriza a memória das expressões do médico e do paciente retratadas em pinturas famosas, pois elas são atemporais, semelhantes ante o sofrimento de uma dor, a angústia pela evolução, o desespero pela má notícia. Este realismo emocional de um ser humano cuidando de outro ser humano não deve desaparecer por mais que tenha se ampliado exponencialmente a racionalidade pela expectativa de sucessos diagnósticos e terapêuticos com repercussão favorável sobre o prognóstico, até porque ela veio com o contrapeso da expansão das adversidades e se acompanha de grandes limitações- vide a ortotanásia.
Na chamada relação médico-paciente, independente das peculiaridades de época, cada um deve cumprir a sua parte. É uma obviedade, embora por vezes mal compreendida. A execução, contudo, beneficia-se pelo grau de real conhecimento sobre o outro, ou seja, pela interatividade. É sabido que há faces ocultas sobre os passos de fato desenvolvidos pelo outro, preenchidas por presunções que ele desempenhará segundo as necessidades. O consentimento representa um crédito ao profissionalismo do médico e aos compromissos a serem assumidos pelo paciente.
Este crédito chama-se Confiança, a força da beira do leito que entrelaça franqueza, competência e autenticidade. Manifesta-se um exterior que transparece o interior, que é pilar do exercício ético da Medicina.
Há uma ponte de continuidade neste contexto de Confiança em que o acesso pelo paciente nem sempre está bem conscientizado pelo médico. Mas precisa ser, pois reúne três expressões de mesmo significado: crédito, confiança e entrega. Não porque irá acrescer responsabilidade, mas porque contribui para transmitir a real dimensão do significado de confiança.
Vamos supor um procedimento cirúrgico de caráter eletivo. O paciente prepara-se para uma pausa na rotina, esperando retomá-la em breve. Muitos pensamentos e atos acontecem até ele se apresentar no dia agendado. O fio condutor é a confiança na equipe profissional, no Serviço, no hospital, nos sistema de saúde.
A conexão efetiva dar-se-á após a chegada do paciente e do médico ao hospital. Ela contudo, não é menos importante do que a conexão remota bilateral dos preparativos. Cada um presume que o outro preparou-se conforme esperado, o médico apto para operar, o paciente tendo preenchido as instruções previamente recebidas.
É interessante apreciar que o paciente não costuma perguntar ao médico se ele está bem disposto naquele dia, enquanto que o médico não costuma passar de um contato superficial do tipo “está animado?”. O domínio do pensamento é sobre o técnico-científico. A sensação que a melhor maneira de se portar humano com outro humano é prover a excelência profissional. Assim caminha a Medicina. Idealmente com um grau quantum satis de humanização embutida, aliás, na imensa maioria a integração numa bom nível se faz presente, ao contrário do que muitos propalam.
As relembranças sobre humanização em Medicina contribuem com bem-vindos detalhes, todavia, os movimentos não devem dar a exagerada conotação de existência de duas portas, a humanizada e a não humanizada. Fico imaginando a inquietude de uma gestante conduzida à sala de parto e que se vê prosseguindo no corredor após passar por uma porta onde leu Sala de Parto Humanizado.
A Bioética da Beira do leito entende que a relação médico-paciente persiste o mesmo rio do passado com águas atuais quando o médico trabalha para que a sua atuação aconteça num ambiente representativo de um paciente com confiança, que manifestou no consentimento um ato de delegação, a disposição à harmonia da convivência e a vontade de superação de incertezas.
Os esforços para a manutenção da confiança são pilares da humanização da beira do leito!