Há várias formas de se enxergar a relação médico-paciente. Uma delas é pelas lentes da honestidade. Ou seria melhor dizer da sinceridade? Ou de ambas, sinceridade referida ao próprio indivíduo e honestidade referida ao outro.
A interação humana com instrumentos da verdade e a conformidade dos atos e das palavras consigo mesmo combinam-se com a Bioética pelo respeito à vida, intrínseco na Beneficência, pela evitação do dano, pensada na Não maleficência (Segurança), pela rejeição a discriminações, inserida na Equidade e pela força da dignidade, cuidada pela Autonomia.
As vivências de ser profissional e de ser paciente ensinam que baixos níveis de autenticidade na relação médico-paciente induzem a erros profissionais, facilitam desentendimentos e influenciam negativamente as taxas de sucessos em Medicina.
Na gestão de um confronto da relação médico-paciente por um Comité Bioética é essencial avaliar se ocorrem sinceridade ou a sua falta e honestidade ou desonestidade, em ambas as partes. As combinações possíveis costumam orientar peculiaridades de abordagem. Exemplos:
1- Paciente se diz assintomático para desviar o foco de atenção do médico por receio de uma investigação clínica. Ele não foi sincero e ao mesmo tempo mostra-se desonesto com o médico.
2- Paciente com síndrome de Munchausen é a mesma situação com inversão de objetivo.
3- Paciente não consente com um procedimento e “fica de pensar”, o que já sabe que não fará. Ele está sendo sincero (consigo), contudo desonesto (com o médico).
4- Paciente já sabe que não consentirá sem ressalvas, todavia deixa o atendimento fluir até o momento do consentimento para a tomada de decisão, quando, então, expõe suas condições. Ele está sendo sincero, contudo não foi honesto com o médico no decorrer do processo, onde já poderia ter exposto eventuais objeções previsíveis. É observado em paciente Testemunha de Jeová, por exemplo.
4- Paciente está desgostoso com atitudes do médico, não verbaliza, mas segue as orientações. Ele não está sendo sincero, não obstante, faz-se honesto em relação a suas obrigações no atendimento.
5- Médico cuida do paciente com pouquíssima experiência pessoal, mas compensa seguindo uma correta orientação que solicitou ao colega experiente. Ele não está sendo sincero (pessoalmente), mas comporta-se com honestidade (profissional).
6- Médico comunica um péssimo prognóstico ao paciente e, não querendo assumir o cuidado do mesmo, diz, mentirosamente, que há falta de vaga para a internação desejada pelo paciente. Ele está sendo sincero e desonesto.
As complexas nuances deste binômio sinceridade/honestidade no contexto da atenção a necessidades de saúde são melhor captadas pela cooperação multiprofissional. A integração de ângulos de visão específica treinada no cotidiano de cada partícipe, matéria-prima da sua expertise, eleva a capacitação do Comité de Bioética para reconhecer e interpretar manifestações de (não) sinceridade e de (não) honestidade numa relação médico-paciente conflituosa.
O ideal é que tais percepções de modo abrangente aconteçam no decorrer do processo de tomada de decisão, incorporadas na prudência com que se integra benefício, segurança e autonomia. Portanto, um esforço para evitação de confrontos na sequência, razão para um SOS Comité de Bioética.
Em outras palavras, que as apreciações de sinceridade/honestidade sejam trabalhadas à medida que dados e fatos vão se incorporando ao diagnóstico, direcionando para opções terapêuticas e sustentando perspectivas de prognóstico. Tal intuito é enriquecido pela execução em cooperação na forma de um time.
A história da Medicina registra vários níveis de trabalho em equipe com o paciente, médico e enfermeiro, clínico e executor de exame complementar, clínico e cirurgião, etc… etc… O século XX foi particularmente fecundo na ideia da conveniência da diferenciação de expertises pela constituição de novas especialidades e de novas profissões. Como curiosidade, o Código de Deontologia Médica vigente no Brasil de 1945 a 1953 cuidava para que o médico não mais fizesse anestesia geral sem a presença de pelo menos um colega, contudo, admitia a exceção em casos de urgência.
A modernidade trouxe a ampliação do número de integrantes do time de atendimento, inclusive pacientes aprenderam a exigir o conhecimento especializado além do generalista. E não somente, no aspecto quantitativo, o ganho qualitativo é fundamental, materializado pela modificação da expressão predominante de monólogos justapostos para a de diálogos.
A ideia que passou a vingar é a de um comportamento dinâmico em prol de utilidade e de eficácia pelo estabelecimento de conexões mais aceleradas entre emissão e recepção multiprofissional e interdisciplinar, no contexto de um time, não importa se os participantes sejam mais fixos ou mais circunstanciais.
Em outras palavras, raciocínio clínico, laudo por escrito, palavra entre médico e paciente em ampla e ativada intercomunicação, lápis e borracha propiciando o maior número possível de arestas aparadas, nos diversos contextos, quer técnico-científico, quer humano, quer ético, quer legal.
Um time profissional na área da saúde absorve e distribui entre si cada expertise individual. Os acréscimos pessoais derivados dos demais representam aumento da propriedade intelectual e ajustes da visão pessoal de satisfação das necessidades pela observação das motivações do coletivo que facilitam a construção de tarefas compartilhando um objetivo comum segundo relações bem especificadas.
Cada membro persiste com a sua identidade profissional intacta, mas, cresce o valor pelo realce do conjunto “tocando o caso” solidariamente. O empenho agonista contribui para reduzir as conhecidas não superposições e contraposições proporcionadas pelas peculiaridades de acurácia dos métodos biomédicos. A figura da orquestra é ilustrativa neste sentido. Já foi o tempo em que o médico batia o escanteio, corria para cabecear e ainda ficava lá atrás como goleiro, e o paciente era mero espectador.
A capilarização da Bioética pelos profissionais da saúde de modo geral é vantajosa. Ela amplifica os sons da moralidade no trato de sinceridade/honestidade com prudência e com zelo. O ganho de harmonia na relação médico-paciente é sintonia de objetivos que previne os confrontos da beira do leito que demandam consultoria por Comités de Bioética. É a Bioética de todos nós!