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270- De pedágio em pedágio, as partes tomam um rumo

pedag

Criticam as intervenções da Bioética achando-as longas demais. Entendo. Hoje, a concisão, a abreviação e o imediatismo dominam a comunicação, especialmente estimulados pela algema mental nas mãos dos usuários de smartphone e que tais, em todos nós, portanto.

Com ironia, num tempo em que se sabia o que era uma carta e como escrevê-la de modo afetivo, incisivo e comunicativo, há quase 400 anos, o imortal embora precocemente falecido Blaise Pascal (1623-1662) declarou: “… Eu redigi esta carta longa porque não tive tempo de encurtá-la…”.

De fato, há situações onde expandir a emissão é preciso em prol da recepção. No trato com dilemas e confrontos na beira do leito, a Bioética não pode lidar com fatos, valores e deveres de modo reducionista. A tendência ao prolixo evita que o resultado vá pro…lixo.

Há uma utilidade da Bioética a ser mantida. É preciso  promover a garimpagem das minudências dos contraditórios para criar caminhos e também validá-los.

Não é tarefa simples porque envolve a exploração e a extração de preciosidades da circunstância em meio a veios de saberes teóricos e práticos e de elaborações de pontos de vistas.

Um certo período de tempo para o planejamento tático e operacional é, pois, inevitável para o desenvolvimento de juízos de ordem moral num contexto clínico.  O prazo  indispensável não significa, contudo que não possa haver a agilidade que é antônimo de procrastinação.

A equipe  cuidadora portando o seu profissionalismo e o paciente apresentando seus objetivos, preferências, valores e desejos divergem? Entram em conflito? Alguém aciona o Alô Bioética? Se positivo, gera-se uma expectativa. Precisa ficar bem claro que  qualquer esperança no atendimento deverá ficar longe de uma atuação da Bioética qual o maravilhoso esfregar da lâmpada de Aladim e aparição de um  gênio que nela habita para satisfazer um desejo, ou mesmo o acionamento de um drone pra imediata entrega da solução. Não há nada de fictício na beira do leito, ela é uma vitrine de realidades. Mas é sabido que percepções humanas sofrem distorções induzidas pela afetividade mais ou menos consciente. Ponto inicial é contribuir para que as partes  conscientizem-se sobre as diferenças entre moldagens de realidades estimuladas por seus propósitos e moldagens dos propósitos articuladas com as realidades. Ademais, ambientar com o sincero respeito aos motivos do conflito, que é primordial para impregnar ares de respeito e de confiança.  

A Bioética, ao ser chamada à beira do leito para executar a gestão de um conflito, tem que cumprir um roteiro com pedágios pouco amigáveis com os ponteiros do relógio. Cada um deles dará passagem a um tipo de componente, o clínico, o moral, o legal e o ético (ajuste ao código de ética profissional). Todo transpasse requererá uma documentação de consistência. Não se admitirão  meias palavras ou tão-somente manchetes, por mais apreciáveis que possam resultar por uma das partes. Ou seja, não há chance para um sem parar nos pedágios.

O pedágio clínico tem uma cancela em que o Abre-te Sésamo corresponde aos fatos do caso esclarecidos. O agente da Bioética precisa entender o raciocínio clínico específico para a circunstância com o qual pode não estar familiarizado, conhecer os benefícios e os malefícios presumidos, inteirar-se da série de alternativas não proibitivas, acatar dados estatísticos sobre prognóstico e  ir pinçando os pontos relevantes. Em suma, ultrapassar o pedágio clínico representa compreender o que de Medicina está espalhado na “mesa de contestação”, sem o que é improvável o encontro de   validades  para a transformação em “mesa de resolução”. Evidentemente, a técnico-ciência validada ditará possibilidades e impossibilidades.

O pedágio moral lida com os valores atribuídos aos fatos. Os dos profissionais da saúde costumam representar  similitudes pelo profissionalismo, entretanto é comum haver alguma pessoalidade. A diversidade a ser explorada e extraída é mais habitual sobre os valores do paciente no conflito. A clareza de justificativas é necessária porque avantajar um valor costuma minimizar outro da parte contrária.  O agente da Bioética tem que abrir o leque dos elementos, garimpar tudo o que é admissível poder ser feito em termos de flexibilidade, paciência e adaptabilidade, evitando transparecer juízos. Uma neutralidade não é exigida, pois pensamentos do tipo concordo com este valor e discordo daquele são praticamente inevitáveis por quem de fato conhece Medicina-médico-paciente, pré-requisito vigoroso para uma consultoria na beira do leito. Tais pensamentos flutuantes não devem transparecer em nome da imprescindível imparcialidade. Quem não segue a crença Testemunha de Jeová não costuma ficar neutro devido a suas convicções, mas a gestão do conflito da beira do leito precisa respeitá-la e cuidar para que os valores a ela ligados valham em igualdade de condições com quaisquer outros presentes.

O pedágio legal  supre dificuldades trazidas pela inexistência de um profissional do Direito na equipe de saúde que atue diretamente nos cuidados com as necessidades de saúde do paciente. Um dos aspectos da Bioética é a promoção da interdisciplinaridade multiprofissional, que faz com que alguns aspectos de um ofício seja apreendido coletivamente. Assim, um agente da Bioética costuma ter conhecimento da legislação vigente de interesse das Ciências da Saúde  pela convivência com advogado, assento obrigatório em Comité de Bioética.

O pedágio ético refere-se fundamentalmente a uma varredura pelos artigos do Código de Ética profissional vigente. É vedado ao médico é caput de alto grau restritivo que admite poucas brechas. É uma eventual pertinência destas que precisa ser apreciada com o olhar da Bioética. Já existe uma brecha no corpo do Código de Ética Médica que se refere ao risco iminente de morte, um critério nem sempre fácil de ser manejado. A mentalização pelo avesso do  É vedado ao médico  em É desejável pelo médico facilita estimular o médico a insistir na sua recomendação desde que não atinja a  coerção, o chamado paternalismo fraco. É atitude que pode ser catalisada pelo consultor da Bioética, criar um clima de confiança que não violentando os valores do paciente, propicie um repensar, algo como uma oportunidade para uma segunda primeira opinião. Críticos alardeiam que a gestão de conflitos na beira do leito pela Bioética têm um viés a favor do “sistema”. Não é bem assim. Evidentemente, há muito mais configuração sobre a parte do profissional da saúde/instituição de saúde/sistema de saúde, incluindo o sincero interesse pela saúde do paciente, pela recusa em se postar indiferente. A Bioética valoriza a condução pela razão da Medicina, esclarece as relações da tolerância com a responsabilidade, conscientiza que fraquezas existem e não justificam afirmações de força pela outra parte, ilumina que verdade é do conhecimento e que valor é do desejo, acresce oportunidade para a demonstração de não indiferença, dá voz ao paciente, evoca o direito ao não consentimento pelo paciente, faz com que os intervenientes sintam de fato os meandros do conflito.

Cumpridos os pedágios, o rumo final cabe às partes.

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