Análises críticas da chamada Bioética principialista são habituais por quem inclui em seu perfil a valorização das boas práticas na beira do leito e o destaque da vitalidade da ética na Medicina. Mobilizações neste sentido idealista consideram os 4 princípios (beneficência, não maleficência, autonomia e equidade) individualmente e de modo integrado. O menos discutido costuma ser a equidade que depende muito do sistema de saúde. Os demais ajustam-se melhor a iniciativas, inquietações e objeções dos profissionais da saúde e dos pacientes e ficam assim mais ao gosto de teses, sínteses e antíteses.
Na individualidade, destaco a não maleficência. Herança supostamente hipocrática, preocupação de não causar danos desnecessários ao paciente, alerta para o perfeito cumprimento da prudência, da perícia e do zelo, ordem alfabética que não necessariamente é a mesma de importância num determinado caso. O pensamento de evitar aplicar algo ao paciente à margem do escasso potencial de benefícios da época, sem nenhuma perspectiva de benefício mesmo, tão somente, pela vontade de ajudar – “…Se bem não puder fazer, não faça um mal...”- tornou-se anacrônico. Não porque danos iatrogênicos tenham sido eliminados da beira do leito ou porque diretrizes clínicas passaram a alertar para a potencialidade do malefício dos vários métodos diagnósticos e terapêuticos, mas porque existe muito benefício a ser oferecido ao paciente perante infinitas circunstâncias. Soa paradoxal, mas é que a expansão do benefício fez com que ele e o malefício perdessem a conotação maniqueísta. De fato, malefício deixou de ser tão-somente uma oposição a benefício, nele se inseriu, a ele se fez colateral. Em outras palavras, a aplicação de métodos com perspectiva beneficente contém a possibilidade do malefício, não exatamente alternativo, mas concorrente, o que se chama de adversidade. Se é verdade que efeito adverso do benefício não impede o sucesso pretendido, então, o termo não maleficência fica prejudicado na sua essência original. Entendo que a nomeação do princípio pode representar uma homenagem ao legado de Hipócrates, ao valor histórico de ter percebido e atuado para que somente a aplicação de ideias-ou ideologias- não fosse aconselhada como fundamentos da Medicina. Não obstante, as razões acima apresentadas sustentam o posicionamento da Bioética da Beira do leito de usar o termo Segurança no lugar de não maleficência. Segurança ajusta-se mais adequadamente à necessária preocupação com a individualização na consideração de um método beneficente e da inevitabilidade de certos efeitos adversos. Em face a um objetivo terapêutico, o recomendável para um paciente-padrão pode não passar por uma série de filtros que incluem os da contraindicação momentânea, da interação danosa, da comorbidade de alto risco, etc…, conjunto que é habitualmente enxergado como indicador risco-benefício. Há situações onde a natureza do benefício justificaria o risco alto de adversidades, quando há, por exemplo, risco iminente de morte e há situações onde o risco fala mais alto desaconselhando a expectativa pelo benefício, como gravidez, lactação, criança, terceira idade, histórico de alergia, disfunções hepáticas ou renais.
No coletivo é onde acumulam-se as críticas dos que tendem a reprovar a Bioética principialista. Há uma determinação histórica. A reunião dos princípios, justificada por serem altamente enraizados nas tradições morais do exercício ocidental da Medicina, aconteceu numa forma que poderíamos considerar como de monólogos justapostos e a crítica é justamente sobre as dificuldades de estabelecer diálogos com argumentos próprios de cada um quando da aplicação com perspectiva de integração. Em Marketing, existe a expressão canibalização. Ela significa que um lançamento concorre com um outro produto da mesma empresa e substitui a preferência de mesmos consumidores. A novidade que “engole” a pré-existente pretende a manutenção da primazia do mercado frente à concorrência e a preservação dos objetivos financeiros.
Guardadas as devidas proporções já que beira do leito não deve ser um território mercantilista, pode-se estabelecer uma analogia, a canibalização entre princípios da Bioética. A não maleficência -ou Segurança- que rechaça a beneficência, é um exemplo. A contraposição que mais sustenta as críticas sobre Bioética principialista, contudo, é aquela que envolve beneficência e autonomia. É situação onde a conjugação de beneficência com não maleficência (Segurança) para uma conduta é interpretada pelo médico como recomendável, todavia o paciente exerce o direito a participar ativamente do processo de tomada de decisão (autonomia) e decide não dar o seu consentimento. Há, pois, uma disputa na própria beira do leito, no âmbito da relação médico-paciente, entre exposições de “produtos” do mesmo Código de Ética Médica que podem acabar numa “eticofagia”. Assim, na esfera do Capítulo V – Relação com pacientes e familiares, usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente versus desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte exige uma apreciação com fundamentação Bioética cujo resultado será muito provavelmente a canibalização de um princípio pelo outro quando não houver o consentimento pelo paciente, quer ativamente, quer numa Emergência.
Pode-se dizer que um antagonismo sempre rondou a agregação principialista da beneficência e da autonomia nos processos de tomada de decisão à beira do leito. Em decorrência, observa-se um grau de superioridade do “imperativo moral” do consentimento em relação ao “imperativo científico” da beneficência na moralidade atual da beira do leito em momentos de resolução da conduta. Por isso, a canibalização da beneficência -filtrada pela Segurança- pela autonomia costuma ser mais frequente, representando um papel de alter ego ao não consentimento pelo paciente da recomendação médica.