Um Comité de Bioética precisa estar preparado para ajudar a resolver confrontos éticos entre profissionais da saúde que trabalham no hospital. Eles podem ser da mesma profissão ou diferente e muitas vezes há uma hierarquia funcional presente. A demanda costuma originar-se de uma das partes ou de responsável por gestão próxima das mesmas.
Mas este préstimo é função de um Comité de Bioética? De fato, um ponto preliminar é se o Comité de Bioética possui esta competência regimental, se não estaria avançando sobre uma atribuição da Comissão de Ética Médica, o braço do Conselho Regional de Medicina na instituição. Neste contexto, relembre-se que membros da Comissão de Ética Médica são eleitos pelos pares, têm mandatos pré-definidos, enquanto que, diferentemente, a composição do Comité de Bioética dá-se comumente por desejo próprio (voluntariado) e por indicações de representação de Serviços.
Entendo que o Comité de Bioética não deve ser proibido de contribuir para a resolução de confrontos éticos entre profissionais da saúde institucionais. Cabe dentro da multiplicidade de encargos de pessoas idealistas que se assinalam pela vigilância ética e cuja eficácia cresce na medida em que, reunidas como Comité de Bioética, conseguem atingir uma imagem institucional de respeito ao lado de uma representação suficientemente independente.
Penso, pois, que é legítima conceder a um Comité de Bioética a prerrogativa de lidar com uma iniciativa preliminar pré-representação de classe de conciliação para confronto ético entre dois profissionais da saúde do hospital. Evidentemente, é disposição para quando nenhuma das partes ainda decidiu se dirigir à Comissão de Ética Médica ou diretamente ao Conselho Regional de Medicina.
O acionamento deve acontecer essencialmente quando há forte probabilidade da viabilidade de uma mediação técnica com olhar sensível às peculiaridades institucionais. É desejável que a disponibilidade da pertinência da opção seja endossada no âmbito da política institucional e adquira uma estima de bem-vinda entre os profissionais da saúde.
A conexão pró-conciliação necessita de ferramentas adequadas para desconstruir renitências sem violentar a condição humana. É aceitável que o processo mediador empreste a orientação emanada no Código de Processo Ético-Profissional do Conselho Federal de Medicina. Assim, os trabalhos pretendendo o redirecionamento de resistências para transigências devem pautar pela oralidade – transformar monólogos faiscantes em diálogos sintonizados-, simplicidade- condução desestimulante de tergiversações-, informalidade- criação de um ambiente mais à vontade do que o então vivenciado pelas partes- e economia de tempo e não desperdício de função.
Aceita a participação intercessora do Comité de Bioética, o ritual pelo apaziguamento do conflito interpessoal de natureza profissional deve passar por não menos do que quatro etapas que se encadeiam cooperativamente: 1- Identificação dos fatos com imparcialidade, o Comité de Bioética é um território neutro; 2- Determinação da esfera ética em questão, em que ademais do ditado pelo senso comum, o conhecimento dos vários Códigos de Ética das profissões de saúde desempenha papel importante; 3- Identificação de caminhos válidos e justificáveis na circunstância bem focada; 4- Amparo à implementação do recomendado, como apoio para re-orientações, o desaprender pela conscientização dos equívocos, recuos e desculpas dignos e isentos de uma sensação de auto-violência.
Insisto que o sucesso da reunião entre representante do Comité de Bioética e as partes em confronto será tanto mais provável quanto maior for o empoderamento institucional do mesmo. Pois este domínio favorece a formação de um clima de confiança numa autoridade que goza do respeito e, por isso, bafeja ares de integridade. Este, uma vez inalados pelas partes, dá a sensação de que o poder de um iguala-se ao do outro, não importa eventual ordenação de atividade institucional. O ambiente assim formatado favorece a efetiva participação, a compreensão tolerante e os ajustes de pontos de vista, inclusive entre superior hierárquico e subordinado, situação de notória complexidade conciliatória, quando cabe ao Comité de Bioética envolvido controlar a suposta inevitabilidade de “a corda sempre arrebentar no lado mais fraco”.
Hospitais em geral apresentam um nível quantum satis de harmonia entre os profissionais de saúde. Pesquisa recente mostrou que cerca de 2 de cada 3 médicos apresentam bom relacionamento com seus líderes no trabalho e apenas 1 em cada 10 a relação é ruim (Quadro).
Muitos dos habitualis insatis correspondem a desagrados reprimidos por receios dos efeitos de manifestação de protesto, ocultos até o momento em que o “copo enche”, ocasião em que o transbordo acontece de modo feroz, por vezes explosivo mesmo. Obviamente, há os atritos pontuais cuja grandeza depende de características institucionais de promoção da convivência entre os profissionais de saúde.
O representante da Comissão de Bioética em atuação mediadora deve ter em mente algumas matérias-primas majoritárias dos confrontos interpessoais de natureza profissional: 1- desrespeito e desvalorização acerca de competências individuais e coletivas, arrogâncias do tipo I am the best, you are…” ; 2- carência do sentimento de pertencimento institucional; 3- desprezo pela educação em serviço intra e interprofissional.
A Bioética endossa a percepção que há uma gradual perda universal da capacidade de trabalhar junto, de ensinar/aprender com o outro, de respeito a posições ideológicas e a valores sociais distintos, que pode ser alocada também em hospitais. Em decorrência, uma Comissão de Bioética deve considerar fortemente que a sintonia profissional beneficia-se da promoção de uma aceitação da ambivalência, atitude que está sendo perdida. Colaboradores, funcionários, servidores, seja lá como são chamados, não precisam ser amigos, mas devem ser colegas. Por isso, a objeção que deve haver a uma postura de transformar uma certa apreciação pessoal num rótulo global, num ambiente de trabalho. Sob a óptica da ética aplicada às profissões da saúde, não gostar que o outro viva se gabando não justifica, por exemplo, suprimir o usufruto da sua competência profissional pelo paciente.
Em suma, um Comité de Bioética deve estar atento e bem fundamentado para dar parcela de excelência de cooperação para o alcance de um ambiente de trabalho mais eficiente, mais participativo, mais comunicativo, mais flexível e mais produtivo, em meio às diversidades da condição humana dos profissionais da saúde, vale dizer mistura de personalidades, temperamentos e caráteres.