A aula transcorria normalmente. Sala quase cheia, os olhos da plateia no professor com as exceções de praxe sob o efeito da hipnose do smartphone. Foi quando disse que os objetivos, os valores, os desejos e as preferências do paciente devem ser respeitados pelo médico. Reforcei que este quarteto sustenta o direito à autonomia pelo paciente e que obriga à obtenção do consentimento livre e esclarecido por parte do médico ético. Uma fala que se tornou rotineira em treinamentos sobre Bioética e que habitualmente não causa maiores discussões.
Mas aquele dia foi diferente, muito diferente. Fui imediatamente interrompido pelo jovem médico de óculos, semblante de desaprovação, corpo reposicionado na cadeira e fone de ouvido pendurado no pescoço que sugeria que as mãos estivessem livres para fazer instantaneamente o clássico movimento de interpelação: ” … Professor, o médico tem também objetivos, valores, desejos e preferências profissionais… Como fica, então?…”.
A aula acabou aí, ou melhor, doravante a sala de aula transformou-se numa arena de Bioética. Melhor impossível! Até os que estavam (des)ligados nos smartphones redirecionaram a atenção e entraram na discussão após se inteirarem com o vizinho da razão da súbita agitação verbal e corporal dos colegas.
Uma tensão pedagógica tomou conta do ambiente. Vozes dominantes logo se revelaram atraindo adesão e crítica. O rastilho percorreu o ambiente rapidamente. Ouso dizer que fiquei calado por não menos do que 10 minutos, respeitoso às loquacidades superpostas, qual espectador de jogo de tênis, olhos “em nistagmo” e mente focada na qualidade das sacadas. Há muito tempo, não acontecia aquela explosão de pensamentos acerca de um tema de Bioética, o silêncio tímido costuma ser a tônica da resposta a questões que sempre cuido de fazer no entremeio do expositivo. Oxalá houvesse um clone daquele médico provocador em cada aula!
A maioria feminina manifestou tendência pelo ponto de vista que pacientes passaram a analisar mais ativamente as orientações dos médicos, inclusive por iniciativa destes, porém não resultavam discordâncias. Já a minoria masculina considerou fortemente que os pacientes têm aceitado as ordens médicas com mínimas considerações, conformando-se rapidamente embora desejando ter ouvido outro tipo de orientação. O jovem médico que iniciou os debates sugeriu que o atendimento pelo SUS é fator de menos exercício do direito à autonomia, pois era assim que observava naquele hospital de clínicas ligadas à Universidade. O pensamento que um não consentimento estava mais para utopia do que para uma realidade do cotidiano fluiu para uma síntese conclusiva.
Pareceu-me que algo como um atavismo tomava conta de muitos presentes. Ocorreu-me que havia a influência de uma “hereditariedade” comportamental não ligada a genes e fruto de uma tradição profissional. E que ela, mesmo havendo o reconhecimento do direito à autonomia pelo paciente por parte do médico atual, reafirmava o conceito do não exercício do mesmo pelo paciente.
Afinal, o direito à autonomia pelo paciente em consonância com a condenação de atitudes de paternalismo é conquista recente da sociedade. Mentalizei, também, numa janela da mente aberta em meio à atenção ao debate entre os jovens, que eles eram recém-formados por um aprendizado com fortes alicerces no que é (tem que) para ser feito. A ênfase na graduação do sentido paciente-médico na relação médico-paciente (ordenação de vínculo que não aconteceu à toa numa época essencialmente paternalista) é sobre os sintomas e os sinais que emitidos pelo paciente devem ser captados pelo médico a fim de sustentar as necessárias decisões técnico-científicas.
Foi um dia especial de enorme gratificação para quem se preocupa com o desempenho ético das novas gerações de médicos na beira do leito. A grande lição foi que o estudo da Deontologia e da Bioética desde o primeiro ano do currículo da Faculdade de Medicina é aceitável e, evidentemente, não deve ser dispensado. Muito embora, o jovem pouco use a antiga ficha para fazer uma ligação, o ensino destes saberes é no máximo a sua colocação antes de discar o número desejado. A ficha das atitudes começa a cair de fato quando o já médico assume as responsabilidades inseridas na obtenção de um número de CRM, quando as ligações começam a se completar. É crucial ter isso em mente. Assim, o período da Residência Médica é o mais eficiente para conscientizar acerca do emparelhamento da prudência e do zelo na aplicação da Medicina com a pluralidade da condição humana.
A Bioética deve contribuir fortemente para uma conexão médico-paciente durante a Residência Médica que equilibre técnico-ciência com humanismo. É o momento ideal da semeadura porque ainda se trata de uma fase de aprendizado do médico, onde ele ainda pode ser considerado uma célula-tronco totipotente a se diferenciar no profissional ético que respeite o quarteto objetivos, valores, desejos e preferências do paciente sem se sentir violentado por eventuais contraposições ao seu próprio quarteto.
A aula terminou em função do horário, estendeu um pouco no corredor, mas, o tema, com certeza, foi colocado na maleta de médico dos debatedores que funciona como caixa de ferramentas. Estimular a coleção de ferramentas forjadas no calor da Bioética que facilitem o manejo da humanização forjadas é missão daqueles que acreditam que nenhum profissional da saúde deve atuar na beira do leito sem as possuir.