3835

PUBLICAÇÕES DESDE 2014

254- O médico e a cebola

haaren
Diretrizes clínicas organizadas por sociedades de especialidades tornaram-se “livro de cabeceira” do médico. Periodicamente, revisões e atualizações das mesmas ajustam o conhecimento a evidências recentes sobre o já sabido e sobre inovações. Cada lançamento preserva e modifica recomendações, combinação de endossos e de substituições que mantém a Medicina “tradicionalmente moderna”.

Assim, as orientações para as boas práticas  pela métrica das diretrizes clínicas comportam-se como avalistas de um nível coletivo de verdade para um período de tempo. O tripé formado pela ciência, tecnologia e ética articula-se de forma sensível a objetividades – subjetividades- que passam a ter mais valor do que as dominantes até então. Por isso, o prazo de validade do conhecimento catalogado que admite dados e fatos por vir, cada um deles contribuindo para uma maior aproximação- que se mostra com aceleração multiplicada- da verdade à certeza. O “perecível”  por uma verdadeira autofagia técnico-científica e realimentação ética faz com que a beira do leito comporte-se como ecossistema onde o médico não pode desprezar o passado da Medicina, tem que  aplicar o presente e vive aguardando, idealista e esperançoso, as transmutações dos muitos futuros do seu profissionalismo.

É bem sabido que certezas em Medicina estão mais associadas à problematização do que à solução. As tão frequentes certezas do não foi verdade no caso materializam-se nas percepções das lacunas dos efeitos das soluções aplicadas seguindo o verdadeiro do momento do saber. Realidades que asseguram espaços para inclusões e substituições justas por natureza e que nutrem expectativas de representar um passo adiante na relação benefício/segurança. Incluem tanto novas ideias – um transplante, por exemplo- quanto percalços do caminho- resistência a antibióticos das chamadas super-bactérias, por exemplo.

A prática da Medicina na beira do leito revigora-se, pois, de interpretações dinâmicas do acúmulo ininterrupto de dados e de fatos assistenciais e de pesquisas que disciplinam sob forma ética. Com indispensável lápis e borracha na mão para obter o mais fiel retrato instantâneo da beira do leito, o médico “verdadeiro à Medicina” propõe-se à submissão ao “melhor da verdade no momento”, e, desta maneira, molda a aptidão para maximizar a utilidade e a eficácia dos métodos validados. A convivência de gerações de médicos que se observa na beira do leito é garantia da continuidade do valor do lápis e borracha que faz com que o ensinamento do mais velho torne-se um aprendizado com verdades (mutáveis-  como  um fármaco de primeira escolha) e certezas (imutáveis, como a anatomia topográfica).

Os valores e regras aplicáveis no cotidiano do médico são componentes do código moral da beira do leito – um aparelho prescritivo da moral com base nos ensinamentos de Michel Foucault (1926-1984)- que dá medida à excelência das escolhas sobre a atualidade dos saberes. Os alinhamentos provocam inevitáveis inquietudes profissionais que têm na experiência de fato vivenciada pelo médico na beira do leito o mais forte efeito tranquilizador de excelência na obediência ao Princípio fundamental II do Código de Ética Médica vigente: O alvo de toda a atenção do médico  é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

Reforça-se, pois, que a autoridade do médico não está exatamente na posse de um diploma ou de um número de CRM. Ela está na legitimidade técnico-científica-ética das verdades que ao longo da carreira vai aplicando frente à necessidade de saúde de paciente após paciente. Cada ocasião representa uma interação -e um aprendizado- entre o estado da arte da Medicina – em que diretrizes representam bússolas- e o humanismo – em que a condição humana multiplica destinos. O vigor do profissionalismo do médico alimenta e é alimentado pela continuidade de quem engrandece articulando a virtude da prudência e o devotamento ao zelo.

Entrechoques entre seguir diretrizes e conseguir ser humano, tão ao gosto da Bioética, lapidam a autenticidade – um ser humano possuindo as competências para cuidar de de outro ser humano delas necessitado- da prática da Medicina. Ser autêntico, ciente de que quanto mais se sabe sobre diagnóstico, terapêutica e prognóstico, mais ramificações de possibilidades nascem, significa, pela ausência do inconteste, a inconveniência da figura autoritária do médico como vista outrora. Noção que têm fundamentado a elaboração dos últimos Códigos de Ética Médica brasileiros.

O exercício da boa Medicina na beira do leito pelo médico ético, ao respeitar as verdades científicas e humanas entrelaçadas da época, admite a figura estrutural de uma cebola, pegando carona em pensamento de Hanna Arendt (1906-1975) expresso no livro Entre o passado e o  futuro. Precisa-se, então definir quem é que ocupa o centro da cebola, de onde qualquer atuação de liderança não poderá ignorar as demais camadas para chegar ao outro e estará protegida de imposições inadequadas de fora ou de cima.

Para esta análise, podemos nos valer dos elementos listados no Pentágono da beira do leito: Medicina, médico, paciente, instituição de saúde, sistema de saúde. E, então, perguntar, qual deles deve estar no centro da cebola. Uma questão do clássico dilema de quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, pode sustentar uma dúvida sobre a pertinência no centro da cebola do médico (em nome da Medicina) ou do paciente (em nome do qual o médico relaciona-se com a Medicina).

Nas circunstâncias atuais, entendo que por mais respeito que se deva ter ao ser humano paciente, por mais que se deva reduzir o desnível de poder, por mais que a Medicina esteja fortemente articulada com instituição de saúde e com sistema de saúde,  é o médico que deve ocupar o centro. É o eticamente desejável. Pentágono

É lícito, pois, mentalizar o médico no centro da cebola representando autoridade da beira do leito em feedback permanente com o saber da Medicina, a autonomia do paciente, a organização da instituição de saúde e a ordenação do sistema de saúde. O respeito a esta disposição sustenta a liberdade do ser médico.

Desta maneira, sentir-se preso a compromissos com saberes, normas e atitudes é que lhe traz, por mais paradoxal que possa soar, o necessário desprendimento para se movimentar  entre o conhecimento especializado, a infra-estrutura básica e a confiança na sua pessoa (auto e do próximo), em busca da melhor adequação do atendimento profissional.

A Bioética entende que uma das expressões mais relevantes da liberdade do médico – que parece em movimento ladeira abaixo- é conseguir o domínio das necessidades técnicas, científicas, humanas e organizacionais do caso. É um alvo que embora com a mosca obscurecida ultimamente, não pode ser perdido de vista.

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES

fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts
set0 Posts
out0 Posts
nov0 Posts
dez0 Posts
jan0 Posts
fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts

fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts
set0 Posts
out0 Posts
nov0 Posts
dez0 Posts
jan0 Posts
fev0 Posts
mar0 Posts
abr0 Posts
maio0 Posts
jun0 Posts
jul0 Posts
ago0 Posts