Diretrizes clínicas organizadas por sociedades de especialidades tornaram-se “livro de cabeceira” do médico. Periodicamente, revisões e atualizações das mesmas ajustam o conhecimento a evidências recentes sobre o já sabido e sobre inovações. Cada lançamento preserva e modifica recomendações, combinação de endossos e de substituições que mantém a Medicina “tradicionalmente moderna”.
Assim, as orientações para as boas práticas pela métrica das diretrizes clínicas comportam-se como avalistas de um nível coletivo de verdade para um período de tempo. O tripé formado pela ciência, tecnologia e ética articula-se de forma sensível a objetividades – subjetividades- que passam a ter mais valor do que as dominantes até então. Por isso, o prazo de validade do conhecimento catalogado que admite dados e fatos por vir, cada um deles contribuindo para uma maior aproximação- que se mostra com aceleração multiplicada- da verdade à certeza. O “perecível” por uma verdadeira autofagia técnico-científica e realimentação ética faz com que a beira do leito comporte-se como ecossistema onde o médico não pode desprezar o passado da Medicina, tem que aplicar o presente e vive aguardando, idealista e esperançoso, as transmutações dos muitos futuros do seu profissionalismo.
É bem sabido que certezas em Medicina estão mais associadas à problematização do que à solução. As tão frequentes certezas do não foi verdade no caso materializam-se nas percepções das lacunas dos efeitos das soluções aplicadas seguindo o verdadeiro do momento do saber. Realidades que asseguram espaços para inclusões e substituições justas por natureza e que nutrem expectativas de representar um passo adiante na relação benefício/segurança. Incluem tanto novas ideias – um transplante, por exemplo- quanto percalços do caminho- resistência a antibióticos das chamadas super-bactérias, por exemplo.
A prática da Medicina na beira do leito revigora-se, pois, de interpretações dinâmicas do acúmulo ininterrupto de dados e de fatos assistenciais e de pesquisas que disciplinam sob forma ética. Com indispensável lápis e borracha na mão para obter o mais fiel retrato instantâneo da beira do leito, o médico “verdadeiro à Medicina” propõe-se à submissão ao “melhor da verdade no momento”, e, desta maneira, molda a aptidão para maximizar a utilidade e a eficácia dos métodos validados. A convivência de gerações de médicos que se observa na beira do leito é garantia da continuidade do valor do lápis e borracha que faz com que o ensinamento do mais velho torne-se um aprendizado com verdades (mutáveis- como um fármaco de primeira escolha) e certezas (imutáveis, como a anatomia topográfica).
Os valores e regras aplicáveis no cotidiano do médico são componentes do código moral da beira do leito – um aparelho prescritivo da moral com base nos ensinamentos de Michel Foucault (1926-1984)- que dá medida à excelência das escolhas sobre a atualidade dos saberes. Os alinhamentos provocam inevitáveis inquietudes profissionais que têm na experiência de fato vivenciada pelo médico na beira do leito o mais forte efeito tranquilizador de excelência na obediência ao Princípio fundamental II do Código de Ética Médica vigente: O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.
Reforça-se, pois, que a autoridade do médico não está exatamente na posse de um diploma ou de um número de CRM. Ela está na legitimidade técnico-científica-ética das verdades que ao longo da carreira vai aplicando frente à necessidade de saúde de paciente após paciente. Cada ocasião representa uma interação -e um aprendizado- entre o estado da arte da Medicina – em que diretrizes representam bússolas- e o humanismo – em que a condição humana multiplica destinos. O vigor do profissionalismo do médico alimenta e é alimentado pela continuidade de quem engrandece articulando a virtude da prudência e o devotamento ao zelo.
Entrechoques entre seguir diretrizes e conseguir ser humano, tão ao gosto da Bioética, lapidam a autenticidade – um ser humano possuindo as competências para cuidar de de outro ser humano delas necessitado- da prática da Medicina. Ser autêntico, ciente de que quanto mais se sabe sobre diagnóstico, terapêutica e prognóstico, mais ramificações de possibilidades nascem, significa, pela ausência do inconteste, a inconveniência da figura autoritária do médico como vista outrora. Noção que têm fundamentado a elaboração dos últimos Códigos de Ética Médica brasileiros.
O exercício da boa Medicina na beira do leito pelo médico ético, ao respeitar as verdades científicas e humanas entrelaçadas da época, admite a figura estrutural de uma cebola, pegando carona em pensamento de Hanna Arendt (1906-1975) expresso no livro Entre o passado e o futuro. Precisa-se, então definir quem é que ocupa o centro da cebola, de onde qualquer atuação de liderança não poderá ignorar as demais camadas para chegar ao outro e estará protegida de imposições inadequadas de fora ou de cima.
Para esta análise, podemos nos valer dos elementos listados no Pentágono da beira do leito: Medicina, médico, paciente, instituição de saúde, sistema de saúde. E, então, perguntar, qual deles deve estar no centro da cebola. Uma questão do clássico dilema de quem veio primeiro, o ovo ou a galinha, pode sustentar uma dúvida sobre a pertinência no centro da cebola do médico (em nome da Medicina) ou do paciente (em nome do qual o médico relaciona-se com a Medicina).
Nas circunstâncias atuais, entendo que por mais respeito que se deva ter ao ser humano paciente, por mais que se deva reduzir o desnível de poder, por mais que a Medicina esteja fortemente articulada com instituição de saúde e com sistema de saúde, é o médico que deve ocupar o centro. É o eticamente desejável.
É lícito, pois, mentalizar o médico no centro da cebola representando autoridade da beira do leito em feedback permanente com o saber da Medicina, a autonomia do paciente, a organização da instituição de saúde e a ordenação do sistema de saúde. O respeito a esta disposição sustenta a liberdade do ser médico.
Desta maneira, sentir-se preso a compromissos com saberes, normas e atitudes é que lhe traz, por mais paradoxal que possa soar, o necessário desprendimento para se movimentar entre o conhecimento especializado, a infra-estrutura básica e a confiança na sua pessoa (auto e do próximo), em busca da melhor adequação do atendimento profissional.
A Bioética entende que uma das expressões mais relevantes da liberdade do médico – que parece em movimento ladeira abaixo- é conseguir o domínio das necessidades técnicas, científicas, humanas e organizacionais do caso. É um alvo que embora com a mosca obscurecida ultimamente, não pode ser perdido de vista.