A beira do leito representa uma dimensão da realidade humana. Ela admite vários ângulos de visão. Didaticamente, diálogos entre os mesmos podem ser mentalizados de modo tripartite. De fato, uma virtualidade de dezenas de triângulos “habita” este ecossistema, cada um estimulando certas reflexões éticas, morais e legais sobre inumeráveis encontros entre saúde humana e Medicina. https://bioamigo.com.br/triangulos-da-beira-do-leito/
Um destes triângulos da Bioética da Beira do leito é formado por Vulnerabilidade, Autonomia e Confiança. Qualquer movimentação num deles traz repercussão nos demais, como costuma acontecer em ecossistemas.
É impossível pensar num padrão de inter-relação da tríade apresentada. A individualidade prevalece. Pois, todo ser humano é vulnerável ao seu modo, a autonomia manifesta-se em cada um segundo razões que a própria razão desconhece e a confiança é crédito com prazo de validade.
O fundamento ético do exercício da Medicina no Brasil que o alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano harmoniza-se com a grande verdade que cidadão/paciente é criatura social possuidora de uma estrutura biológica sujeita a possibilidades e a realidades de doenças. Este pensamento, por indicar fragilidades na constituição humana, decodifica que ninguém, de maneira inata, tem saúde invulnerável.
Relações humanas e ambientais da vida vão construindo outras modalidades “adquiridas” de vulnerabilidade. Elas impactam, sob algumas formas na vulnerabilidade intrínseca em relação à saúde. Conhecem-se as vulnerabilidades de natureza pessoal, social, política, econômica e ecológica e as ligadas a manifestações de injustiça, discriminação, opressão, violência de modo geral. Assim, agressões físicas, ataques morais, inadequações ambientais são notórias etiopatogenias de danos à saúde em seu amplo conceito, e, em decorrência, estabelecem-se exigências de imprescindíveis conexões aliviadoras, reparadoras e preventivas ao humano, ao material, ao organizacional de um sistema de saúde.
Vulnerabilidades remetem para expressões tanto de crença quanto de descrença no outro. Na área da Saúde, a confiança do paciente no conhecimento, na habilidade e no poder profissional do médico é tradição que, muito embora abalada nas últimas décadas, persiste efeito placebo adjuvante dos benefícios admissíveis pela Medicina. Por isso, é que este lado do triângulo que liga vulnerabilidade e confiança é altamente sensível à essência de É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência– art. 1º do Código de Ética Médica vigente. Mais do que censura, É vedado deve ser entendido como estímulo a revitalizações constantes, por exemplo, da antiga confiança cega do paciente no médico. Não faltam leituras na beira do leito que o amálgama confiança da relação médico-paciente parece caminhar, não exatamente para a extinção, mas para uma postura de maior vigilância em parte sustentada pelas disponibilidades de acesso à informação e em parte pelos efeitos de memórias de negligências e/ou imperícias sofridas ou noticiadas – serviço e desserviço. Este dualismo de realidades e falsidades de impressões reúne-se para acentuar o sentido de vulnerabilidade da sociedade ao atendimento às necessidades de saúde como um todo. Um alerta é que momentos de alta emoção dificultam reverter incompreensões sobre complexidades, dúvidas e imponderabilidades que povoam o processo de ajuste médico da prudência e do zelo a cada composição clínica.
É oportuno ressaltar, pois, que o médico nesta interface vulnerabilidade-confiança vivencia duas situações de alto impacto profissional. A primeira é o quanto sensações de vulnerabilidade pelo paciente sobre o sistema de saúde – muito presentes no brasileiro-, ou seja, o que “está por trás”, contaminam o grau de confiança no médico, “ali na frente”. A segunda reporta-se à conveniência de atitudes do médico para efetiva preservação do grau de confiança depositado na sua pessoa, vale dizer, a prática de uma sincera comunicação acolhedora e esclarecedora sobre incertezas, imprevisibilidades e adversidades de uma boa Medicina. Evidentemente, promover a aceitação de insatisfações pelo leigo é tarefa ainda mais dificultada quando o ecossistema da beira do leito torna-se um ambiente habitado por equívocos multiprofissionais, impropriedades do hospital e desacertos do sistema de saúde.
O direito do paciente à autonomia é conquista recente da sociedade. Interage com vulnerabilidade e confiança por meio de um pronunciamento que se pretende autêntico, livre e esclarecido. É o consentimento. Uma análise crítica do cotidiano da beira do leito sugere fazer uma distinção entre consentimento e permissão. Embora sejam vistas como sinônimos, elas servem para designar atitudes diferentes na beira do leito. A permissão é uma resposta afirmativa a uma solicitação educada, por exemplo, quando o médico dispõe-se a realizar exame físico, ela não subentende uma negação. Já o ato de consentir inclui na sua essência a possibilidade da alternativa do não consentimento. Desta maneira, na triangulação em questão sobre o ecossistema da beira do leito, níveis de vulnerabilidade e de confiança influenciam na emissão do consentimento.
No que se refere à confiança, ocorre uma proporcionalidade mais evidente, ou seja, a probabilidade do consentimento cresce ou decresce por influência do nível de (des)confiança no processo de atenção às necessidades de saúde, onde como se sabe, o médico não de modo infrequente fica refém do sistema. Por outro lado, a vulnerabilidade por admitir algumas modalidades exerce influência diversificada sobre o exercício do consentimento. Quem perdeu o direito à assistência suplementar de saúde consente – muitas vezes contrariado- com realidades distintas do sistema único de saúde, quem está sob forte sofrimento físico consente – agradecido- com a conduta de um médico desconhecido, quem está incapaz de tomar decisões é obrigado a uma terceirização do processo de consentimento.
Neste quesito da autonomia, há um certo paradoxo envolvendo a triangulação com vulnerabilidade e confiança. Como se sabe, o paternalismo do médico foi considerado inadequado pelo risco de desrespeito a objetivos, valores, preferências e desejos do paciente. Acontece que uma assim dita confiança cega no médico direciona para uma aceitação da recomendação que desagrada num primeiro momento. Justamente, por esta estrita confiança, um processo de paternalismo fraco, aquele em que o médico insiste de modo ético respeitando os limites da coerção, transforma o não inicial num sim com fortes tintas de confiança. Na composição do consentimento trabalhado participam invariavelmente formas pessoais, sociais e econômicas de vulnerabilidade. Haverá sempre o efeito de comunidade moral – posso mas devo- orientadora de decisões razoáveis em prol do bem-estar.