A profissão de médico favorece a adesão à teoria das inteligências múltiplas. De fato, é plural a habilidade em pensar e realizar tudo que se insere nos sentidos da Medicina. As diversificadas realidades da prática médica demandam competências articuladas, o que Howard Gardner (nascido em 1943), o idealizador da teoria, se referiu como: “estruturas da mente distintas e relativamente independentes umas das outras e que podem ser modeladas e combinadas numa multiplicidade de maneiras adaptativas”.
A história da beira do leito é uma narrativa de combinações nunca esgotadas de necessidades de saúde. As transformações são regidas por composições infinitas de anatomias, etiologias e fisiopatologias incidentes caso a caso, o que vale dizer, muitas possibilidades para um único corpo humano.
É de se notar, pois, que somente o trabalho de múltiplas estruturas da mente humana é capaz de bem sustentar geração, expansão e aplicação dos necessários e heterogêneos conhecimentos técnico-científicos e habilidades humanas na área da Saúde.
Ao longo da carreira de médico, oportunidades ligadas ao que costuma ser mencionado como aptidão, talento ou vocação surgem e/ou são garimpadas para satisfação de módulos de inteligência e processamento de funções específicas, pois a beira do leito é local provocativo de 1001 habilidades profissionais.
A teoria das Inteligências Múltiplas, que entende que o Quociente de Inteligência (QI)- Wilhelm Stern, 1871-1938- traz uma visão reducionista, reconhece a individualidade de inteligências lógica-matemática, visual, intrapessoal, interpessoal, linguística. O conhecido eu sou bom nisso e péssimo naquilo, você é bom naquilo e péssimo nisso.
Não é difícil reconhecermos rapidamente vários colegas com destaques no âmbito desta classificação. De fato, médicos conectam-se aos pacientes com atitudes sensorial, lógica e linguística, manifestam domínios de empatia e simpatia, reagem a mutabilidades e inconstâncias subentrantes individualizando-se em grande parte em conformidade com maiores ou menores facilidades proporcionadas pelas expressões das citadas inteligências.
A análise crítica das missões exercidas pelo médico na beira do leito, desde intenção até aplicação contribui para reduzir o valor de uma crítica à teoria das Inteligências Múltiplas levantada por Linda Susanne Gottfredson (nascida em 1947) para quem Gardner confundiu inteligências com traços de personalidade. O certo é o que a beira do leito quer é um acolhimento de um ser médico, um ser moral, um ser profissional, um ser humano do modo mais eficiente que inteligências e personalidades consigam proporcionar.
É facilmente reconhecível que é utilizando possibilidades distinguíveis das suas inteligências que clínicos, cirurgiões, intervencionistas de modo geral, especialistas em exames de imagem, pesquisadores, gestores, etc… lidam com mais ou menos (inclui nenhuma) fluidez com cada área de atuação, com a relação médico-paciente-Medicina, com atividades assistenciais, didáticas e de pesquisa, com recepção e difusão do conhecimento, com associações de classe, com ligações fora da Medicina, etc… etc… Esta linha conceitual explica porque é clássico supor que um bom clínico não seria um bom cirurgião (carência de coordenação motora, por exemplo), admitir que a gestão é para um contingente especial (responsabilidades de organização e economia acima da clínica), engrandecer no patologista o interesse por detalhamentos de fato esclarecedores (valorizar a parte submersa do iceberg).
Assim, o apuro das competências para o enfrentamento dos desafios das necessidades de saúde conforme demonstrado na beira do leito constitui contraponto à teoria das inteligências gerais da supracitada Linda Susanne Gottfredson, para quem um indivíduo hábil num setor tende a ser hábil também nos outros. Mais uma consideração a favor da frase inicial deste artigo: A profissão de médico favorece a adesão à teoria das inteligências múltiplas.
É admissível, pois, que o gatilho diferenciador das 1001 habilidades do médico não seja exatamente, o treinamento diferente. As nuances deste é que são acionadas pelas especificidades da “estrutura da mente”. Não faltam exemplos de jovens que a priori entusiasmados por uma especialidade encontram a posteriori outra que lhes seduz: “você nasceu e viverá para mim”.
É da história de vida dos médicos que os estímulos para a seleção das trilhas do estudante de Medicina recém-ingresso na Faculdade até a escolha da modalidade de Residência especializadora que o exercício das especialidades médicas carrega vontades – desejos+movimentos- fortemente associadas a peculiaridades de inteligência. As expressões de competências materializam-se como um poder que necessita ser preservado e expandido. É comum observar médicos que se aposentam no papel, reduzem atividades, mas não aposentam as inteligências, assim conservando o poder do ser médico. É o fantasma da demência que mais assusta a inteligência do manter-se médico.
No encadeamento inteligências selecionadas promovem seleções de pensamentos e determinam especialidades selecionáveis, o poder do especialista somente se torna representativo quando embasado em evidências científicas. Caso contrário, ele corre o risco de representar uma inteligência “vazia” e uma atuação dissociada de preceitos éticos. É perante o conhecimento validado, pois, que a tríade inteligência-pensamento-especialidade trabalha com impossíveis neutralidades sobre o valor técnico-científico das evidências- cada médico lapida suas preferências de utilidade-, ajustando verdades disponíveis caso a caso, segundo um juízo clínico com o máximo de imparcialidade sobre benefício e segurança.
A exuberante diversificação de métodos causada pelo progresso da Medicina foi determinando, ao longo do século XX, utilizações dos painéis de inteligências individuais mais afinadas com os domínios teóricos e práticos da conciliação entre clássico e inovação. A consequente explosão de (sub)especialidades alinhou-se a uma incômoda fragmentação da visão de enfermidade de um ser humano. Cada árvore tornou-se mais estudada, é verdade, a floresta, contudo, apequenou-se no senso clínico. Criou-se um desafio para a articulação dos painéis individuais de inteligências na beira do leito.
O início da diversificação do ser médico por binômios específicos de inteligência-pensamento-especialidade foi tímido. Muitos formadores de opinião conservadores manifestaram oposições conceituais e desconfianças práticas a respeito do valor das especialidades nas primeiras décadas do século XX. Com o tempo, o instituto das inter-consultas formais ou informais foi se consolidando, especialmente nos hospitais de ensino ligados a Universidades e organizados em distintos Serviços de disciplinas, além da crescente conscientização sobre as vantagens da pesquisa clínica. Todavia, as inter-consultas não garantiram num primeiro momento o diálogo sobre os diferentes núcleos de saber, ou seja, a interdisciplinaridade de fato. Elas mais representavam uma reunião de monólogos presente na estratégia de conduta. Assim como colírio não tinha nada a ver com pomada, a atuação especializada sobre um órgão fazia-se com “cegueiras” sobre efeitos colaterais no conjunto do corpo humano.
Cabendo na figura da precedência do ovo ou da galinha na história recente da Medicina, subsequentes juízos críticos sobre a eficiência na beira do leito foram trazendo reconhecimento do potencial de danos das opiniões de especialistas soltas, descoordenadas. Mais recentemente, as chances do indesejável cresceram pelas dificuldades de preservação de um timing clínico vantajoso dependentes do sistema de saúde. Solicitam-se exames – incluo exame como inter-consulta a uma especialidade- que por demorarem para ser coordenados pelo solicitante traz o risco de prejudicar o ritmo da tomada de decisão e assim deixar escapar melhores oportunidades de contenção e de resolução clínicas.
A anestesia é emblema antigo da afirmação que o poder de uma especialidade afirma-se na perfeita conjunção temporal e espacial com outras. O pensamento crítico, assim, expande-se além do conhecimento “intra-muros” da especialidade, estimula o desenvolvimento de ajustes de aplicação das modalidades de inteligência, o que faz crescer o poder das mesmas na medida em que a interdisciplinaridade faz sentir a imprescindibilidade da complementariedade de estruturas da mente.
Dando um passo largo para os dias de hoje e guardando analogia com os clássicos times de profissionais da saúde para aplicação terapêutica, chega-se à edificação do valor de um time de médicos para tomadas de decisão. A vontade de bem posicionar a contribuição de sua especialidade-inteligência para a construção do diagnóstico e para apreciação da relação benefício clínico-segurança biológica e a conjunção de objetividade e transparência trazem vários benefícios que podem ser resumidos como ascensão profissional coletiva.
Os intercâmbios de conhecimentos entre os partícipes do time no processo de tomada de decisão auxiliam a cada um entender um pouco mais de mais especialidades, conhecer melhor as facilidades e as dificuldades vividas pelas mesmas, ou seja, eles fazem pegar carona em inteligências mais aquinhoadas do que as próprias no caminho da integração em “tempo real”.
Para terminar, desejo expressar uma preocupação de natureza ética com o exagero de utilização de “outras superioridades de especialidades-inteligências em relação a nossas”, sob a forma da chamada Medicina defensiva. Inteligências de imagem, numéricas e demais mais aptas para avaliação de certas peculiaridades clínicas são solicitadas a se manifestar com o objetivo de endossar a já bastante composição de inteligência do clínico para o caso. O dispendioso “consórcio” de inteligências mobilizado além do razoável não se articula com o Princípio fundamental IV do Código de Ética Médica vigente – Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.