O paciente internado tem, pois, um médico responsável, obrigatoriamente. A gemelaridade da responsabilidade internar/dar alta! É simbólico da relação médico-paciente. O Código de Ética vigente à época da Resolução CFM 1493/1998, todavia, focava no ato médico em si: É vedado ao médico deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente.
O que significa cumprir a responsabilidade, exatamente? O que é que faz o médico ser um irresponsável na situação? Poderíamos listar: não passar visita, não prescrever, não fazer a evolução, não ajustar risco/benefício, adiar decisões e atos sem apresentar justificativas, não obedecer normas institucionais, etc… Duelos entre egocentrismo e empatia não raramente são testemunhados na beira do leito.
Bom, então, o médico precisa conscientizar-se das interfaces entre liberdade pessoal para (não) ir e (não) vir, interrupção de objetivos que permanecem sonhos, evitação de iniciar atividades e a frustração decorrente e cumprimento da responsabilidade inserida no melhor do profissionalismo.
Intenções, atuações, visões de consequências resultantes devem idealmente estar animadas pelo vigor da prudência. O poder confiante nesta virtude vantajosa contra riscos presumidos. Em voo livre? Questão de foro íntimo? Pretensamente.
Organizar e reorganizar o dia profissional exige o médico cônscio de limitações teóricas da liberdade. Aliás, elas estão simbolizadas, em parte, no Juramento de Hipócrates. Antigamente, falavam-me que sacerdócio bem definia o modelo de dedicação profissional que impede livres movimentações. Hoje, por meio da Bioética, expresso o dever técnico-científico-humano de dar acolhimento às necessidades do paciente. Bem melhor!
Eu, particularmente, aprendi desde cedo no espelho de mestres-exemplos que desejar-me um profissional responsável requeria entender extensão e limites da auto-determinação. Suspender a agenda do consultório ou assistir a uma necessidade familiar? Duas responsabilidades conflitantes necessitando de bons meios para atingir bons fins objetivando o máximo de fidelidade ao futuro.
São valiosas as oportunidades do jovem médico para presenciar colegas mais velhos utilizando estratégias inteligentes para conciliar ciência, ética e vida privada, administrando motivações internas e respeitando normatizações externas pertinentes ao ofício.
Quanto aprendizado! Facilita a construção do ser humano responsável, do profissional responsável, enfim, do responsável -na plenitude da palavra- pelo paciente. Mais recentemente, vi sedimentar a noção que os arranjos do cotidiano do médico deveriam evitar que tanto o paciente quanto ele próprio viessem a se sentir de alguma forma violentados, ambos merecedores da preservação da dignidade. Tarefa desafiadora do médico, pois sujeita a mudanças constantes de ventos clínicos e pessoais. A sentença de Leon Tolstoi (1828-1910): “… Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira…” cai como uma luva literal e simbolicamente em relação ao equilíbrio entre privacidades do médico e atuação à beira do leito. O que pode parecer muito natural para a maioria dos médicos tem um alto preço emocional nem sempre conscientizado.
Ao longo da carreira colecionei termos interconectáveis e cabíveis nas considerações acima: idealismo, motivação interna, vontade, razão, liberdade. Eles dão dimensão aos movimentos do médico-cidadão segundo o que acolheu, acolhe e acolherá por seleções animadas por realidades dinâmicas de ordem interna e externa. Bom senso é ferramenta multi uso. Hoje, em conflito com o poder da Medicina Defensiva.
O idealismo é força que hierarquiza movimentos para o âmbito do profissionalismo. Quanto mais idealismo, quanto mais ativismo profissional, menos liberdade pessoal. Com o tempo, o “amadurecimento do idealismo” combina-se ao pragmatismo e tornam-se motores de novas concessões de liberações de si para consigo mesmo. À medida que o número do CRM fica mais baixo, verifica-se que a liberdade prática aumenta o tom da voz de comando. Às vezes é uma verdadeira liberdade, outras vezes é apenas uma falsa sensação de liberdade a que nos acostumamos atrelados a protocolos de conduta, por exemplo. O idealismo do aprendizado versus o pragmatismo da sua aplicação. A figuração “rato de hospital” – a que fui aconselhado a ser para obter o máximo de aprendizado quando na Santa Casa do Rio de Janeiro- transforma-se naturalmente na quimera de leão e de raposa – força clínica e sutileza de atitude, apud o melhor sentido de Niccolò di Bernardo dei Machiavelli (1469-1527).
A motivação interna é multifatorial, efêmera e instável. Médicos enquanto residentes priorizam o aprendizado. Após se sentirem aptos, envolvem-se mais diretamente com ganho de dinheiro, formação familiar e de bens, ascensão profissional, status acadêmico, etc… Os espaços íntimos do médico vão sendo preenchidos por sensações sucessivas de liberdade legitimadas em desejos liberados para materializar-se. Inúmeras sensações distintas desta natureza formam-se desde a formatura até a aposentadoria. Médica e desejo de maternidade ilustram por si só. Um filho, um doutorado ou ambos?
A realização responsável acontece graças à vontade sobre o planejado. Energizada pela motivação dá-se o vigor para escolhas e para enfrentamento dos inevitáveis obstáculos. Atualizações de conhecimento, reciclagem de habilidades, concursos, empecilhos do sistema de saúde são desafios comuns à vontade do médico em alcançar objetivos profissionais. Um curso no exterior, um doutorado, um pós-doutorado, uma viagem de férias, uma assunção de responsabilidade familiar motivam renúncias e adaptações. Em outras palavras, a vontade comporta-se em nome de uma razão prática ao sabor de necessidades tanto para o cumprimento de responsabilidades profissionais quanto para compromissos de autopreservação.
É crescente a noção que o exercício da Medicina pelo médico-cidadão desequilibrado nas liberdades profissionais e pessoais propicia insatisfação e desenvolvimento do burnout, muitas vezes um dano subclínico que vem à tona justificado por simplificações como “momentos estressados” com pacientes, colegas e pessoas da intimidade. “Não tiro férias há anos” expressando grilhões à overdose de atividade profissional é etiopatogenia do burnout subclínico.
Se liberdade do médico inclui desejar ou não desejar cuidar de um caso, aceitar ou não assumir um determinado posto de trabalho, optar por uma especialidade, não-liberdade do médico impõe refrear vontades da pessoa e objetivos de vida por quem não é livre nem para desrespeitar uma diretriz nem para ter preguiça para comparecer ao plantão.
A Ética contribui para que o intelecto forme juízos quanto a liberdades teóricas que influenciadas por motivações/vontades plurais dão trilho à condução da liberdade prática. A Bioética facilita interpretar o É vedado ao médico no mundo real da beira do leito acompanhado em muitos casos de ressalvas sujeitas a interpretações. Exemplifico pelo art. 88 do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico negar ao paciente acesso a seu prontuário, deixar de lhe fornecer cópia quando solicitada, bem como deixar de lhe dar explicações necessárias a sua compreensão, salvo quando ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros. Como assim? Que critérios usar? Um sobe e desce de conjecturas é inevitável.
A Bioética da Beira do leito facilita haver-se nas muitas montanhas-russa do cotidiano, onde médicos são constantemente acelerados e desacelerados pelas integrações entre liberdade pessoal, interrupção de objetivos, não início de atividades e profissionalismo.
O grau de realização profissional resultante precisa ser o mais próximo possível do idealizado quando do grito ressoante de Passei, entrei na Faculdade de Medicina! Infelizmente, estatísticas atuais mostram predomínio do distanciamento (Quadro)