Sinto-me indignado! É expressão que cresceu na mídia nos últimos tempos. Supõe que alguém se sentiu atacado na sua integridade moral ou entendeu que houve um ataque à moralidade de uma forma geral. Todavia, a manifestação tem ocorrido em distintas naturezas de contraposições, o que sugere uma expansão semântica em relação à referência moral-dignidade.
O que parece é que vários sentimentos de reação a divergências ajustaram-se num modismo de linguagem. Nem sempre fica perceptível que a emissão de sinto-me indignado! segue um raciocínio lógico sobre preservação de si próprio ou do próximo ou de instituição que sustente a afirmação.
É notório que muitos sinto-me indignado! são ditos de modo “automático”. É distanciamento do significado original resultante de um consumismo de língua viva. Ele faz lembrar o passado recente do uso de padrão FIFA, um jargão que supõe boa qualidade sem nenhuma avaliação de critérios específicos para o que está sendo qualificado. Afastar o sentido acadêmico é péssimo, pois dignidade é coisa séria que ultrapassa o senso comum. Relacionando-se a valores humanos, evoca limites à pluralidade da manifestação da condição humana.
Bom, mas, o que é exatamente dignidade? É necessário explicar. Caso contrário, fica difícil fazer diagnóstico diferencial entre frase pronta, “celebridade” de época postada na primeira fila da ponta da língua, e expressão de real elaboração mental sobre impacto moral. Creio, não obstante, que nenhum artesanato de palavras consegue ser totalmente bem sucedido nos esclarecimentos. Complexo assim!
Provoco esta questão porque quem frequenta a beira do leito, local de plena convivência humana, precisa perceber a banalização do significado de sentir-se indignado! Não há dia em que o médico não convive com alguma contraposição profissional, o que traz a desalentadora probabilidade – não realizada de modo frequente, felizmente- de ouvir doutor, sinto-me indignado com sua atitude!
O doutor deve garantir dignidade individual e coletiva para desenvolver a plenitude de laços partilhados no âmbito da Medicina. Dignidade é palavra relativamente jovem na Deontologia Médica brasileira, tendo sido introduzida com foco tão-somente no médico (exercer seu mister com dignidade; respeitando-se a dignidade do colega, 1965). A partir da década de 80 é que dignidade foi direcionada ao paciente.
O Código de Ética Médica vigente no Brasil valoriza a dignidade do ser humano na relação Medicina-médico-paciente-instituição de saúde-Sistema de saúde, expressa no Pentágono da beira do leito (Quadro). O termo neste contexto da saúde reconhece a relação de um ser humano cuidando de outro ser humano, sensível a tempo e a espaço, alimentada pela comunicação e percorrendo meandros plurais quanto a benefício/segurança e compõe princípios fundamentais do exercício da Medicina- que é do mundo-, direitos do médico- que são ajustados ao Brasil- e prática assistencial, de ensino e de pesquisa – conforme reprovação de conduta- É vedado ao médico (Quadro). O exercício da Medicina de maneira ética inclui, pois, um pilar de dignidade ao profissionalismo.
Como o respeito mútuo entre seres humanos é um dos imperativos da razão – que confere valor-, o médico junto com todos os profissionais da saúde necessita de austeridade de razão para aplicar suas potencialidades de ser e de fazer, independente de juízos morais. Se violar a dignidade seria prejudicar a consistência de alguém alcançar um fim superior fundamentado em seus valores, então prejudicar a recuperação da saúde é violar um fim superior que admite ajustes individuais do paciente pelos valores de cada um diante de circunstâncias. Por isso, dignidade é atributo constante da beira do leito.
De acordo com a Declaração dos Direitos Humanos (1948- motivada por indignidades então recentes levadas à máxima potência) todos seres humanos nascem livres e iguais com respeito à dignidade e aos direitos. Mas logo após o primeiro choro, este conceito precisa valer para o recém-nato, o que é grande desafio, e que nos faz lembrar a Lei do Ventre livre (1871, oito décadas antes do documento da ONU)- Art. 1.º – Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre. Inúmeras barreiras, precipícios e labirintos materializam-se no decorrer da vida desafiando a dignidade humana. Vulnerabilidades, coerções e desigualdades exigem mecanismos de proteção a este valor universal.
O médico tem papel relevante na proteção da dignidade humana. Como desempenhá-lo? Bebendo na fonte das boas práticas éticas. Uma influência positiva para a Medicina contemporânea é a ligação entre dignidade e autonomia.
Quando o médico protege o direito à autonomia – do paciente e de si próprio-, ele conecta-se com a dignidade humana, muito embora – que fique claro- respeitar o ser humano não advém de possíveis noções de dignidade ao feitio de cada um, pois poderia incorrer numa violação da autonomia. Explico: pode-se mentalizar o paciente como um ser humano imoral contumaz, um indigno da convivência pessoal ou coletiva, contudo a eticidade do médico impede qualquer atividade profissional com potencial de conceitualmente violentar a dignidade do mesmo, por mais que o médico-cidadão possa, levado pela emoção, duvidar se ainda restaria alguma migalha de dignidade. Nunca deixar de fazer de bom grado profissional é afirmação do princípio fundamental IV – Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.
O estudante de Medicina com seu óbvio foco no aprendizado já precisa lidar com a dignidade humana, pois o afã de recolher ensinamentos diretamente num ser humano carrega potencialidades de atitudes danosas à dignidade. Se por um lado, ele pode não se importar muito com o pudor de quem é portador do fígado que lhe permite treinar a palpação, por outro, ele tem que palpar sem que a mesma constitua violação da intimidade. Com o tempo, já diplomado, o sentido de aprendizado vai sendo passado para um plano inferior, sobressai o sentido da prestação dos cuidados de saúde necessários, em que permanece inegociável o respeito à dignidade humana.
A Bioética da beira do leito entende que é de interesse do médico conhecer três essências orientadoras do apreço pela dignidade humana interligadas ao princípio fundamental II- O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional, ao foco em escolhas do paciente com liberdade sem desvios por visão técnica de insucesso, ao respeito à pluralidade de entendimento sobre valores e à atenção à tríade principialista da equidade, universalidade e integralidade:
- Violação da dignidade humana é um tipo especial de ação com desvio moral. É distanciamento de virtudes para zonas cinzentas em relação a objetivos, intenções e agressividade. A manifestação de um familiar que diz sentir-se indignado porque o médico deu uma grave má notícia diretamente ao paciente não parece que enquadre o profissional em desvio moral, muito diferente de vir a dizer se sentir indignado porque o médico utilizou palavras de natureza coercitiva para a obtenção de consentimento a sua recomendação de conduta – “se não fizer, vai morrer”. A indignidade está atrelada, no caso, à supressão do direito à auto-determinação por escolhas de paciente capaz, em forma hostil, “somente” porque não se concorda.
- Violação da dignidade humana implica em atos conceitualmente indesejáveis, etica ou legalmente proibidos. O gestor que não provê infra-estrutura para o mínimo de segurança ao paciente usufruir de ato médico, o profissional que abandona plantão sem nenhuma explicação e o paciente que usa a identidade de outro para usufruir de servições pelo convênio médico são ilustrativos. Fraude, falsificação, plágio são danos ao profissionalismo digno.
- Violação da dignidade humana não necessita de nenhum outro atributo além da consideração de que se trata de um ser humano. E como Medicina e ser humano são indissociáveis, violar a dignidade representa quebra do elo da hipocrática interpessoalidade profissional da saúde -paciente de que a Medicina não pode prescindir.
A Bioética da beira do leito objetiva a manifestação mesmo que silenciosa de sinto-me dignificado! no decorrer de todo encontro humano que envolva a Medicina.