Antigamente era a consanguinidade que estipulava o engajamento num confronto, um bando contra outro bando, uma família contra outra família. Com o tempo, laços nacionalistas, religiosos, corporativos unem indivíduos não consanguíneos sob determinada bandeira.
Uma epidemia sem fronteiras na atualidade estimula um compartilhamento humanitário, a causa própria é a do vizinho e vice-versa, todos desejando uma redução do risco globalizado. Cria-se a obrigação moral de uma vigilância interconectada, um valor nacional para a educação da população e a deliberação de providências nos mais nobres preceitos democráticos, a ser exercido com prioridade pelas autoridades com responsabilidade sobre a Saúde Pública.
É contexto em que a Bioética pode colaborar efetivamente, especialmente no âmbito da comunicação à sociedade, por meio de esclarecimentos úteis para a adesão a políticas e programas, inclusive apresentando justificativas para quebra de oposições que costumam ocorrer em situações emergenciais e não rotineiras.
O vírus Zika, de repente, exigiu uma visão integrativa de Saúde Pública por meio de um diálogo transparente entre vários representantes da sociedade. O Brasil fez o alerta sanitário e tornou-se ponto central para a emissão de deliberações de cunho ético.
As motivações para prevenir uma expansão presumida e reduzir a situação de realidade atual do vírus Zika distingue-se das habituais ligadas a uma infecção epidêmica que faz adoecer gravemente o enfermo. Não mata mas aleija aplica-se ao que está acontecendo, a síndrome de Guillain-Barré (descrita em 1916 pelos franceses Georges Charles Guillain -1876-1961 e Jean Alexandre Barré -1880-1967) e a síndrome congênita, ambas com expressão neurológica predominante, têm sido relatadas com mais frequência desde que o vírus Zika transformou-se em praga de nossos dias.
É a síndrome congênita que fez a infecção pelo vírus Zika ganhar maior projeção do que a dengue – sumida do noticiário. Afinal, o futuro de uma geração passou a preocupar, o sofrimento transcende a um período limitado pela infecção em si. Cientistas estão trabalhando em ritmo de guerra, o conceito de quarentena ajustou-se para isolamento do vetor Aedes aegyptii, recursos financeiros estão sendo mobilizados, aspectos morais estão sendo repensados.
Neste clima de comoção planetária, o Papa Francisco, guardião de muitos dogmas, surpreende por uma leitura atualizada em relação à síndrome congênita associada ao vírus Zika. Em 18 de fevereiro de 2016, o noticiário mundial repercutiu a fala papal: “… evitar a gravidez não é um mal absoluto...” http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/02/1740789-papa-sugere-uso-de-contraceptivos-por-causa-do-virus-da-zika.shtml.
Esta fresta papal deverá envolver um crescimento do aconselhamento contraceptivo pelo médico. Embora o Papa Francisco não tenha entrado em detalhes sobre métodos, é sabido que certas circunstâncias clínicas podem contra-indicar, por exemplo, o uso hormonal ou do DIU. Assim orientando a mulher/casal que se anima a praticar a contracepção e entende que precisa dos conhecimentos da Medicina, o médico poderia estar descumprindo o Código de Ética Médica vigente? A resposta é um sonoro Não, mas estaria, se estivéssemos clinicando décadas atrás (Quadro).
O mundo gira, o mosquito voa, o vírus pega carona, o ser humano torna-se mais vulnerável, a moral modifica-se, a liberdade ganha.