A pergunta até poderia caber: Será que a arca de Noé abrigou um casal de Aedes aegyptii ou o dilúvio foi criadouro?
Certeza mesmo é que cabe à inteligência do ser humano acolher qualquer percepção de anormalidade ligada à integração com a Natureza, impulsionar explicações e remediações. Erradicadoras ou preventivas dos problemas. Que podem ser novidades desafiadoras requerendo ou não inovações resolutivas.
A recém-epidemia do vírus Zika é ilustrativa de como a Natureza traz uma preocupação após a outra. Por isso, a Natureza não pode ser ignorada, ela é poderosa e exige ser tratada com seriedade. Longe de qualquer conotação de fatalismo, situações de ameaça a uma geração humana pela profusão de sequentes breves alianças entre um diminuto mosquito e um microscópico vírus, como ora vivenciada, não permitem varrer para sob o tapete da ecologia o multi-centenário pensamento de Aristóteles (384 ac- 322 ac): A Natureza não faz nada inútil.
Em pouquíssimo tempo, o olho clínico de médicos brasileiros constatou um inusitado fato congênito repetitivo associado a mulheres que haviam tido a infecção pleo vírus Zika, o acelerado poder comunicativo da internet surpreendeu a todos com um alerta pioneiro, explicações aconteceram, revisões sobre o conhecimento internacionalmente acumulado pouco ajudaram e providências urgentes, após uma inércia inicial, foram desencadeadas com um misto de hesitações e afirmações. Logo, aumentou a preocupação com o mosquito-da-dengue – que já foi mosquito-da febre amarela-, e o apelido tornou-se menos usado porque a dengue passou, pelo menos momentaneamente, para um segundo plano sanitário, ao mesmo tempo em que foi semeada a mobilização para o mais rápido possível desenvolvimento de uma vacina anti-vírus. Métodos clássicos de combate ao mosquito voltaram às manchetes.
As placentas habitualmente fora dos holofotes, inclusive daqueles dos Centros Obstétricos, ganharam notoriedade, todas as serem formadas na atual geração fértil passaram a ser mentalizadas sob algum tipo de proteção para bem cumprirem o seu papel de acolhimento ao Frutificai e multiplicai–vos – ou eliminadas de cogitação, por enquanto.
Assim caminha a humanidade, voam os insetos e pululam os vírus, novos personagens para velhos scripts atuando em cenários repaginados. Quando o homem deixou de constituir bandos de poucos integrantes e assentou em tribos com rápido crescimento demográfico porque podiam ter seguidos filhos sem a preocupação de como transportá-los, o que limitava a procriação nos bandos, os hábitos predadores-coletores foram substituídos por um sentido mais organizado de produção e de armazenamento de alimentos, vale dizer, animais fornecedores de leite e de carne e utilizáveis para trabalho, foram trazidos das florestas para os quintais. Vírus dos animais vieram juntos.
O ser humano passou a ser um novo e eficaz colaborador para a perpetuação de espécies virais – a bem da verdade a revelação da existência de vírus data do final do século XIX. A contribuição humana dava-se pelo espirro, pela tosse, pela diarreia que lançavam os vírus à distância, hospedeiro a hospedeiro, permitindo generosa multiplicação. Não seria “intenção” do vírus matar o hospedeiro-homem, por mais cruel que classifiquemos este dissimulado fugitivo da caixa de Pandora, cada óbito do doente, pelo contrário, representava uma perda da capacidade de manter viva a espécie parasita obrigatória. O importante é o que os médicos chamam de sintomas, que eles permaneçam para serem úteis. Medicamentos trouxeram vitórias em inúmeras batalhas contra vírus, mas a guerra virológica não foi extinta, neste 2016 estamos testemunhando uma nova declaração bélica.
Evidentemente, o ser humano em desvantagem reagiu à agressão patogênica quando os vírus o encontraram e naquele dito mais forte a imunidade foi cumprindo o seu papel protetor e selecionador. Por séculos e até há poucas décadas, todas as crianças tinham as chamadas doenças infantis, como cachumba, sarampo (peste bovina), coqueluche (desde os porcos), catapora, da herança de convivência com os vírus na infância-adolescência. A poliomielite, reconhecida em 1840 pelo alemão Jakob Heine (1800-1879) e bem pesquisada clinicamente pelo sueco Karl Oskar Medin (1847-1927) já foi motivo de grande apreensão pelos pais. Hoje, um eficiente calendário de vacinação, desde que cumprido, faz com que netos atuais não mais passem pelos dissabores das doenças infantis como avós atuais passaram. De fato, “… esforços globais para erradicação determinaram um dramático decréscimo dos casos mundiais de poliomielite de 350000 casos em 125 países em 1988 para 72 casos in 2015..” http://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMp1514467
Uma vacina contra o vírus Zika virá. Há cientistas dando as mãos que esfregarão a lâmpada mágica para dela sair o gênio que satisfará o desejo. As mesmas mãos que, rapidamente, já formam uma corrente pró imunitária ao redor do planeta. Ciência e tecnologia sem fronteiras para combater uma propagação viral igualmente sem demarcações geográficas, pois transpostas a jato pelos espaços aéreos, aeroporto a aeroporto- O Brasil tem cerca de 600 comerciais.
Restrições legais de intercâmbio de material genético estão sendo revistas, lógicas variam de acordo com circunstâncias, flexibilizações são exigidas em tempos de crise. Declarações necessitam de contextualização ao momento e ao acontecimento. O que o papa João Paulo II proclamou com compaixão: os animais têm uma alma e os homens devem amar e sentirem-se solidários com nossos irmãos menores, evidentemente, não se pretende aplicável agora para o representante do reino animal chamado Aedes egyptii, o versátil mosquito que dá carona para o vírus Zika atingir o sangue humano, a ciclo-maneira de perpetuar a espécie. Que, recentemente parece ter passado de exclusiva para altamente predominante por evidências de possibilidade de transmissão direta por fluidos humanos.
Guerra e ética são duas palavras que costumam vir à mente sempre que há uma manchete de preocupação sanitária. A lembrança tem interessantes conotações históricas em relação ao quesito vírus.
O espanhol Hernán Cortez (1485-1547) derrotou os aztecas e o também espanhol Francisco Pizarro (1476-1541) venceu os incas, ambos com diminutos exércitos. Armas barulhentas e cavalos nunca vistos foram importantes, mas o que mais matou foi a “munição virótica” de sarampo, varíola e gripe disparada contra indígenas sem nenhuma trincheira imunitária.
O inglês Edward Jenner (1749-1823) tornou-se o precursor da vacina numa realização tão magnífica pelo roteiro quanto anti-ética pela estratégia. Após ter conhecimento que as mulheres que ordenhavam as vacas contraiam uma versão suave de varíola transmitida pelo gado e não pegavam a varíola humana, Jenner embarcou na hipótese popular que o contato prévio não mortal evitava futura enfermidade letal- o conceito de complexo antígeno-anticorpo surgiria mais de 100 anos depois. Ou seja, ter a varíola bovina- chamada de vacínia- resguardava contra a varíola humana. Este foi o racional para o conceito de vacina- palavra derivada de vacínia. Foi James Phipps, então com oito anos de idade, que, apesar de ser legalmente incapaz, cedeu “voluntariamente” o braço para Jenner fazer algumas escarificações e contaminá-las com material retirado de pústulas de ordenhadeiras. Segui-se um quadro febril bem tolerado e logo resolvido. Numa segunda etapa, o jovem “voluntário da humanidade” foi exposto a casos de varíola e permaneceu saudável. James estava imunizado como acontecia com as ordenhadeiras. Sucesso do “projeto de pesquisa”. Lastimável condução ética, inestimável contribuição social.
Guerra contra o Aedes egyptii, não por causa dele em si, mas pelo terrível conteúdo renovado, trazendo a conotação de guerra virológica, inclusive com a participação de Forças Armadas no Brasil e inquietações de natureza ética envolvendo causas e consequências da virose Zika reproduzem, assim, fatos passados com roupagens atualizadas.
Dizem que em boca calada não entra mosquito. É, contudo, da boca aberta, escancarada mesmo, de onde sai mosquito como termo de alerta. Boca aberta, mão aberta para recursos, olhos abertos para criadouros, mente aberta para indispensável cooperação técnico-científica internacional, pois a cada instante, milhares de desejos por filhos estão sendo contrapostos por receios de mal-formações congênitas causadas pelo vírus Zika. As placentas de uma geração fértil precisam ser acolhidas pela sociedade em geral para que elas possam bem auxiliar o futuro bebê, incluindo o combate e o bloqueio a qualquer agente nocivo que tenha a capacidade de transpor a barreira placentária, seja ele o vírus Zika ou qualquer outro que possa estar envolvido.
É o fim da picada refere-se a limite extremo do que se considera admissível ou tolerável. É o fim da picada que uma picada do mosquito tenha este presumido fim triste. Que venha logo a alegria da picada- embora dolorosa no momento- de uma agulha com vacina que deixe inofensiva a picada – não dolorosa no momento- do mosquito! Até o próximo desafio, pois a história é assim mesmo, uma parte dela faz-se por uma sucessão de (in)conformidades com situações que são o fim da picada!