PUBLICAÇÕES DESDE 2014

210- Documente, documente, documente

Situações que geram estresse associam-se a mais chance de ficarem retidas na memória, servirem como lição para si próprio e  estimularem  aconselhamento preventivo para outros. Na área da Saúde, elas exercem enorme impacto na dinâmica da relação médico-paciente.

Quando o médico sofre algum tipo de representação ética, legal ou administrativa fica evidente a pertinência da observação do francês Michel de Montaigne (1533-1592): “… Nada fixa tão intensamente na memória do que o desejo de esquecer…”. Daí a lição, daí o aconselhamento.

A recente pesquisa  da Medscape sobre médicos dos EUA que passaram por processos profissionais trouxe uma lista de recomendações baseadas na desagradável experiência que ficou fortemente incorporada (Quadro). http://www.medscape.com/features/slideshow/malpractice-report-2015/surgery#page=1

advice
http://www.medscape.com/features/slideshow/malpractice-report-2015/surgery#page=2

São 12 advertências. Destaco a primeira: Documente, documente, documente.

Ela se refere ao prontuário, um papel do médico. Não podemos mentalizar o médico deixando de fazer anotações sobre  o atendimento na história contemporânea da Medicina. É tradição. Todavia, no Brasil, esta tarefa aprendida de geração a geração, foi  valorizada a partir da inauguração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, na década de 40 do século passado e passou a constar do Código de Ética Médica há tão-somente cerca de 30 anos.

De fato, o Capítulo Relação com pacientes e familiares do Código lançado em 1988 trouxe o art. 69: É vedado ao médico deixar de elaborar prontuário médico para cada paciente.

O Código de Ética Médica atualmente vigente inclui o Capítulo Documentos médicos e  expande as considerações sobre o prontuário:

Art. 87- É vedado ao médico deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente. 
§ 1º O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina.
§ 2º O prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição que assiste o paciente.

O estudante de Medicina aprende: consulta é presencial, prontuário é documental. Palavras, atitudes e orientações precisam ser descritas num “diário íntimo do paciente”, prontuário  que cada vez mais eletrônico, não perde seu clássico objetivo de lembrança de dados e fatos.

O que consta no prontuário aconteceu. O que dele não consta “não aconteceu”  e acontecido oculto pode vir a exigir uma revelação que se torna  duelo de palavra contra palavra em meio a interesses opostos. Chance de perda da disputa pelo médico. O prontuário adquiriu uma função de testemunho com fé pública perante apurações de responsabilidade.

O prontuário é um ativo da relação médico-paciente que tem sobrenome: do paciente. Tudo é dele, menos a escrita e a guarda. A anamnese é do paciente, o fígado palpado e doloroso é do paciente, o exame de sangue solicitado é do paciente, a prescrição do fármaco é do paciente, qualquer  anotado sujeito ao sigilo profissional. Curiosamente, esta propriedade do paciente é  a  eficiente defesa do médico acusado pelo proprietário.

Prontuário do paciente é  como dinheiro, papel que não se rasga, não  é aconselhável falsificar. É registro eletrônico que não se deleta, pois o conteúdo representa autenticidade a respeito dos acontecimentos de saúde. Tudo de essencial tem que ser nele comunicado, não somente o kit básico que se aprende na Faculdade, mas também o que se apreende que tem valor na beira do leito, como, por exemplo, atritos com paciente/familiar, falta de material, interferência  indesejada de terceiros.

A preguiça de mãos dadas com a falta de tempo constrói, infelizmente, um percentual expressivo de médicos eticodislálicos, que titubeiam com as palavras, e prontuário em branco é infração ética injustificável, uma inversão de possível defesa profissional para certeza de acusação.

O que for eventualmente escondido, não for registrado por intenção de evitar eventual acusação de imprudência e/ou de negligência, seja lá de quem for, formará um calombo na relação médico-paciente no qual o médico tropeçará adiante – se machucará e trincará o seu número de CRM.

É desejável que diálogos telefônicos que contenham fatos relevantes sejam anotados no prontuário do paciente e na era de aplicativos, uma troca de mensagens fica mais amigável a uma transcrição. Não temos este hábito, mas a comunicação longe do prontuário  que  deixou de ser documentada pode ser, exatamente,  aquela lacuna que o advogado insiste se não teríamos alguma forma de preencher para que aumente a nossa chance de defesa ética, legal e administrativa.

Escrever, escrever, teclar, teclar.  Uns 5 minutos de anotação  no prontuário podem ser o antídoto contra 5 anos de chateação, despesas imprevistas e ganho de cabelos brancos.

 

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