Médico empresta valor e dignidade às múltiplas decisões que compartilha com seu paciente. Essencial para dar uma atmosfera ética à oportunidade de médico e paciente decidirem juntos como uma conexão entre dois seres humanos que se conhecem superficialmente- comumente-, cada qual portando suas individualidades genéticas, fisiológicas, psicológicas e culturais, aplicando intenções e princípios e antevendo consequências. Convicções são necessárias em meio a exigências e a expectativas. “Observadores” internos e externos, reais ou imaginários participam do processo decisório, tornando-o uma verdadeira assembleia com o objetivo do consentimento. Desafios de um lado, limitações de outro modulam o par da livre participação de fato fundamentada na vontade – desejo e movimento- e que assegura vigor ético ao tempo da conexão médico-paciente.
A cada minuto, decisões sobre bem viver e sobre bem morrer acontecem num encontro onde o paciente está sendo a razão de ser do médico. O nome clássico é relação médico-paciente. O moderno é conexão médico-paciente. Denominação à parte, o vínculo interpessoal que plasma tomadas de decisão admite uma simultaneidade da certeza e da dúvida. Ambas não negam que está havendo um compromisso, boas razões científicas, divergências de opinião sobre mesmas circunstâncias.
Imprecisões de diagnóstico, incertezas terapêuticas, imprevistos pós-procedimentos podem ficar mais ou menos explícitos no processo de tomada de decisão. Pensamentos obrigatórios para o médico, opcionais para o paciente. Infinitas expressões de desconfianças sobre benefício e segurança habitam a beira do leito. A deontologia médica moderna estimula o paciente a considerar, a Bioética trouxe princípios, entre os quais: o processo de tomada de decisão deve ser praticado sem nenhuma modalidade de violência moral para o paciente. Em contrapartida, este deve reconhecer que dependendo do autorizado, a decisão é qual número primo, só divide consigo mesmo, e não com a Medicina.
O médico atual ético respeita o direito do paciente de participar diretamente do processo de tomada de decisão, “oferece-lhe” a autonomia e o paciente faz ou não uso da mesma, inclusive um percentual razoável pretende um componente paternalista parcial ou total na atitude do médico. Se tudo autêntico, tudo certo. O problema crucial é garantir que o paciente que reage com vontade preferencial pelo paternalismo, abdicando de expressar desejos, preferências e objetivos, não tem a sua vulnerabilidade utilizada para o médico firmar força.
João, José e Paulo são três irmãos. Mesmos pais, mesma educação, mesmo bom caráter, distintos filhos, distintos aprendizados, distintas personalidades. Eles compartilham um médico a quem se conectam com posturas pouco irmanadas.
João é paciente que segue o médico como uma religião. Ele não faz questionamentos, desestimula o médico a lhe dar explicações, quase que oculta de si mesmo o que está acontecendo, temendo auto-acusações de desleixo e sentimentos de culpa por ter se deixado ficar doente. Não se vê pessoa curiosa sobre motivos e objetivos, não se sente um lutador, a Medicina o “salvará”. Ele faz o que é para ser feito, um cooperativo sem comentários. Simplesmente, submete-se. É tentador que o médico considere João como o perfil do paciente ideal, paciente “de livro”, o “bom paciente” materialização da permissão para a aplicação dos conhecimentos e de condutas-padrão, que se conforma sem reflexões com as intercorrências, que entende que elas, afinal, “fazem parte”. Talvez numa dimensão até maior do que um médico-paciente teria. João não pratica o exercício do direito à autonomia, ele confia no médico de modo absoluto, sabe que dele necessita para que a vida possa continuar com a qualidade que lhe agrada.
João protagoniza o reducionismo, a simplificação do ser beneficiário da Medicina. De modo reflexivo ou não, ele admite que o médico será prudente e zeloso. Acha-se prático ao repetir em solilóquio: “… De que valem seus desejos e suas preferências diante da sua necessidade prioritária com a saúde…?
O irmão mais novo José é diferente. João, inclusive, discute muito com ele sobre ser paciente. “… De novo José? Você questiona, exige esclarecimentos, nem sei se entende bem o que o médico lhe explica, fica pensando demais, um dia quer responder sim, ou dia muda de opinião, e no final consente exatamente da forma como o médico lhe recomendou… Não consigo entender, não aprendeu ainda?…”. De fato, José gosta de se sentir organizando a sua resposta, “entender melhor”, porém nunca se sentiu à vontade consigo mesmo de se recusar à recomendação médica e de preferir uma opção que sentiu mais propensa pelo médico.
Já o irmão do meio Paulo até se gaba de ter se recusado por várias vezes a se submeter a recomendações do médico e de ter recorrido à segunda opinião em mais de uma ocasião. Ele faz muitas peguntas ao médico, é “íntimo” do Dr. Google, lê cada linha da bula, reclama das intercorrências dando a entender que poderia ter havido algum erro profissional, adora preencher lacunas com analogia e imaginação. João não se encaixa no rótulo de “bom paciente”, é curioso demais, exige muito tempo de atenção, procura o médico como que indo ao encontro de um oponente. Como disse um professor: “… Este paciente é tão questionador que é capaz de morrer só para comprovar que é vítima da Medicina…”. Quando Paulo discute com João sobre como ser paciente, adora passar uma mensagem meio que subliminar: “… João, eu não sou você que vai consultar o doutor com uma camiseta escrita Je suis doutor…”
Pois é, João, José e Paulo representam pacientes mentalizáveis pelos artigos 31 e 32 do Código de Ética Médica vigente (Quadro). Razão suficiente para que aspectos deontológicos da beira do leito não prescindam da interpretação pela Bioética.