Se você pega um ônibus, passa a ter uma cara indistinta da dos demais ocupantes dos lugares. Torna-se qualquer passageiro que entrou em qualquer ponto e desce noutro qualquer, como todos. Se você vai ao super-mercado, passa a ter uma cara indistinta da dos demais clientes. Torna-se um consumidor qualquer que entrou para se abastecer e sai com uma sacola cheia na mão e um bolso vazio, como todos. Se você vai ao médico, não é bom que algo semelhante ocorra. Não é conveniente que você seja mais um qualquer numa sucessão de “o próximo” vivenciada em atmosfera de despersonalização mal oxigenada de tempo. Está longe ser o próximo a descer do ônibus, o próximo a pagar no caixa. Está perto, no mínimo, de um idealismo profissional e de um livrinho intitulado Código de Ética Médica. Espera-se.
Simples assim, complexo ainda assim. Não há maior preocupação ética com uma relação passageiro-motorista do ônibus ou consumidor- funcionário do super-mercado. Por sua vez, a ausência do estabelecimento de uma relação médico-paciente compromete a eticidade do encontro. O bom direcionando ao bem, o ótimo direcionando à excelência é o alvo de toda a atenção do médico-ser humano em prol da saúde do paciente-ser humano.
De fato, Medicina não é uma rodagem que você faz de alguns poucos quilômetros ou uma compra de alguns mantimentos. Claro. Mas comunga com uma prestação de serviço para atender a suas necessidades. O ônibus lhe aproxima o destino, o super-mercado lhe aproxima a indústria, a agricultura, a instituição de saúde aproxima a ciência do seu organismo.
Você convive com verdades, admite cultura e ciência. Numa medida que entende pessoalmente aceitável. A Medicina também, numa métrica ditada pela globalização. As verdades do saber médico responsável não são inventadas. Elas surgem da observação simples, da pesquisa estruturada, da interpretação de dados e fatos como evidências. Todavia, as verdades do Compêndio são mutáveis, acervo a reboque de aperfeiçoamentos do conhecimento, tempo-dependente, tecnologia-dependente e, evidentemente, inteligência-dependente. O estado da arte anda e acelerado almejando certezas, mas lapidando verdades.
O compromisso com verdade é legado de Hipócrates. A sua não maleficência representa de 26 séculos de princípio guardião da verdade, mais precisamente sobre as metamorfoses da verdade ao longo dos anos. A verdade sobre os limites técnico-científicos da época que desaconselha ultrapassagens. A verdade sobre o que é tão-somente uma ilusão no caso (âmbito da ortotanásia, por exemplo). A verdade sobre a (in)segurança biológica na aplicação de método com chances reais de benefício (âmbito da relação risco-benefício).
A beira do leito reforça cotidianamente o valor da ciência para as boas práticas clínicas. Ela resolve, ela não resolve, ela agrava, as duas últimas situações são frustantes mas não invalidam. Estas, entretanto, contribuem mais objetivamente para refrear o cientificismo que hierarquiza e valoriza a ciência muito além de outras investigações da verdade.
A confiança madura na ciência nutre o progresso e reduz o “não resolve”, embora não necessariamente o “agrava”, pois verdades da inovação embutem verdades de adversidade. Mas o mundo real da beira do leito admite mais do que o crédito numa ciência expansiva, validada e resolutiva. Há outras crenças que provocam fé. Há, ainda, as atitudes para a aplicação da ciência.
Por isso, o valor do humanismo, a tendência à expansão da interdisciplinaridade para a transdisciplinaridade em função do transcendentalidade, a cautela sobre o “yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay” do imponderável biológico. É provável que o autor desta frase, o espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) não conhecesse os efeitos placebo ou nocebo, mas quem pode negá-los?
Linha cruzada é termo antigo. Talvez não se aplique à modernidade da tecnologia da comunicação. Mas, o significado persiste. Parece justo para designar certos embaraços da beira do leito ligados a dissintonias entre ciência e humanismo. Em outras palavras, uma missão da Bioética da Beira do leito é desfazer ou evitar linhas cruzadas entre ser humano e o vir a ser científico. A Bioética como intercessor para que aspectos da ciência pela voz do paciente e aspectos do ser humano pela voz do médico interajam com a clareza necessária.
Você pode entrar mudo e sair calado de um ônibus ou de um super-mercado com as suas verdades plenamente alcançadas. Pois, trata-se de verdades pouco mutáveis e muito próximas de certeza. Na beira do leito, o enfoque de verdade como algo prévio ao uso e de certeza como subsequente fica inevitável. O antibiótico é uma verdade conceitual na prescrição, a antibiose será certeza na dependência do resultado. Assim como, num ônibus ou num super-mercado o número de presentes ser par ou ímpar é premissa de verdade, mas a certeza só virá após a contagem imediata.
A Bioética da Beira do leito intenciona contribuir para a certeza que caras serão bem distinguidas na beira do leito e criar facilidades para que cruzem suas linhas de diálogos sobre verdade, ciência e cultura livres do desserviço para a Ética de uma conotação de linha cruzada.