Ensinamento da Bioética da Beira do leito: Esteja preparado para adaptações, disponha-se a realizá-las, valorize ajustes de conduta vantajosas para o paciente e admissíveis pela ética. A beira do leito coleciona vários indutores como preferências do paciente, realidades evolutivas do tratamento, recém-atualidades de conceitos e de métodos técnico-científicos, disponibilidades institucionais e do sistema de saúde. Habilidades harmonizadoras qualificam movimentos de flexibilidade do pensamento clínico numa medida a ser devidamente enquadrada numa moldura deontológica.
Tecer homogenizações expertas entre benefício, segurança, autonomia, prudência e zelo requer recursos operacionais de apoio ao raciocínio clínico – um solilóquio clássico do médico que está cada vez mais expandido para um time interdisciplinar e multiprofissional. Um expediente que concorre para formatar adequados encaixes no processo de conexão entre saberes e sabedoria é o uso de figuras de linguagem. Pois bem pensar requer boa linguagem.
Destaco as do pensamento e dentre elas a prosopopeia. Atribuir linguagem e ações a seres inanimados e irracionais costuma ser ferramenta multiuso do raciocínio clínico. Facilita animar o cenário da beira do leito e contribui para a representação do diagnóstico e da terapêutica. Textos antigos de Medicina são ilustrativos deste aspecto da construção de personificação, tais como o esperado exame anatomopatológico fechou o diagnóstico e o novo fármaco é o responsável por uma revolução no prognóstico. Atualmente, dialogamos com uma imagem e ela nos revela pormenores essenciais, aguardamos que a infecção responda ao antibiótico, verificamos que o teste laboratorial afirmou a hipótese clínica, testemunhamos que o descontrole metabólico desdisse a eficiência da prescrição, aprendemos que o efeito adverso que fala mais alto comanda a suspensão do medicamento. Um estilo de ocorrência de sensibilidade.
Tornar etiopatogenias e métodos o sujeito faz parte da identidade do médico na medida em que simplifica compor adaptações ao paciente. Ademais, construções de personificação favorecem transitar na beira do leito com o entendimento que os circunstantes seres vivos -quer humanos, quer não-humanos- estão em constante transformação -um nada estático-tudo dinâmico-, que exige o “radar” clínico sempre ligado, observado e interpretado. O estado inflamatório inicial não é exatamente o mesmo horas após, sob o ponto de vista do processo em si, muito embora sem mudança clínica, pois ou seguiu a natureza patogênica ou esta recebeu reorientação pela terapêutica. Saúde e doença numa expressão de tensão permanente.
A personificação ajuda a manter-se atento ao dito por Sun Tzu (544ac-496ac) no seu livro A Arte da Guerra: “… Se você se conhece e conhece o inimigo, vencerá todas as batalhas…”. Conhecer o “inimigo” na beira do leito significa ver-se médico em vigilância permanente do seu modo de ser e dos seus passos e sobre os andamentos de diagnóstico e de terapêutica aplicados. Simplificadamente, médico, paciente e Medicina conectados por um fio condutor cheio de fiozinhos tão mais transmissores quanto mais representativos da técnico-ciência atualizada e do humanismo que todos almejam resgatar.
Para aqueles que criticarem que o referido “inimigo” dá ensejo a incluir paciente num eticamente incorreto, apresso-me a encarecer que entendam a possibilidade na mesma esfera da razão do uso da Medicina defensiva. Mas, o foco da apreciação sobre o binômio adaptação-personificação que desejo fazer está nos micróbios. Um inimigo em potencial que a evolução adaptativa do homem não trouxe a capacidade natural de enxergar. Uma desvantagem ante o “inimigo personificado”.
Quem nunca adoeceu por “ser pego” por um deles? Quanta gente morreu “atacada” por um deles? E eles, os micróbios que Louis Pasteur (1822-1895) descortinou com a ajuda de lentes, só “desejavam” reproduzir-se e perpetuar a espécie, não tinham a intenção de criar mal-estar ou de matar, se olharmos pelo ângulo que tosse, feridas cutâneas e diarreia são formas de propagação, ou seja manter o hospedeiro vivo e cumprindo a rotina é “de interesse” do micróbio. Mas este desempenho microbiano significa doença para o homem e, apenas para citar um exemplo, a Yersinia pestis (Peste bubônica) que matou dezenas de milhões de pessoas na Idade Média associou-se a quádrupla interação: bactéria, pulga, rato e homem. Aparentemente, uma aliança por adaptação mútua entre os três primeiros elementos.
Mas micróbio pode ser personificado como “amigo”. É sabido que muitas células presentes no ser humano correspondem a bactérias, vírus e fungos, que foram se adaptando com o tempo e que “falam” por nós em muitas situação (vide https://bioamigo.com.br/172-sera-que-nossas-bacterias-provocam-o-que-somos/). Dizem até que somos um “Super-Organismo” e que devemos, por isso, entender que a imunidade admite confrontos de micróbios, de um lado os protetores e de outro os causadores de infecções no ser humano.
Evidências científicas sustentam que seres vivos tão minúsculos quanto irracionais que nos molestam possuem uma “inteligência” que promove adaptações em prol da sobrevivência dos mesmos. Vale dizer, “iniciativas” para a perpetuação da espécie são frequentes. Algo como considerar que a doença no homem é um efeito colateral dos esforços de continuidade da linhagem microbiana. Quem se preocupa com o abate de certos animais para a alimentação humana deve compreender bem o ponto de vista.
Trago dois exemplos referentes a fatos recentes e que provocam um raciocínio “infectado” de prosopopeia:
1- O Brasil passa por um momento difícil pela ameaça do Zika vírus, incluindo danos em futura geração como a microcefalia. Esta infecção ganhou rápida sucessão de novidades, em cerca de 1 ano, apareceu como nova doença transmitida por um velho conhecido, ganhou importância epidemiológica, elevou o nível de gravidade clínica e associou-se à descrição inédita que carrega um poder patogênico que atravessa a chamada barreira placentária e interfere – de modo direto ou indireto- na embriogênese.
Na passagem transatlântica das florestas africanas para cidades do Brasil, numa perspectiva de evolução e de ecologia, entende-se que ocorreu uma acentuada competência do mosquito Aedes aegypti para transmitir vírus (Febre amarela, Dengue, Chikungunya e Zika) na esteira de outras necessidades adaptativas para sobrevivência fora do habitat original como cor, escolha do hospedeiro para se alimentar de sangue, determinação da postura dos ovos, período de imobilidade dos mesmos em função do clima não-africano http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0074-02762013000900011&script=sci_arttext&tlng=pt. Por sua vez, houve a adaptação do vírus ao mosquito hematófago. O vírus necessita do mosquito -há transmissão vertical que serve de reservatório quando a temperatura ambiente é desfavorável- e, talvez, o inverso possa ser verdadeiro. E ambos necessitam do homem. Os efeitos no feto seriam colaterais. Um dano paralelo que tornou-se, de repente, uma grave ameaça à força de trabalho futura de uma nação.
2- A revista Lancet Infectious Diseases, que tem fator de impacto acima de 20 mil, publicou a ocorrência de uma modalidade de resistência bacteriana a antibiótico (colistina) extraído do Bacillus colistinus e última linha e combate a certas bactérias multi-resistentes. Os resultados ensejaram uma manifestação de Apocalipse antibiótica. O termo supõe que de mutação bacteriana a mutação bacteriana com o objetivo do micróbio em perpetuar a espécie, estamos à porta de uma era pós-antibiótico, que reproduzirá a pré-antibiótico, ou seja, onde não se disporá de tratamento eficaz para infecções. http://www.bioedge.org/bioethics/is-the-antibiotic-apocalypse-nigh/11676. O ser humano enfraquece perante inimigos microbianos e uma das explicações é o mau uso do arsenal terapêutico. A Natureza não perdoa. Os micróbios também são filhos da Natureza.
Por fim, vale recordar dois artigos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos humanos, publicação que completa 10 anos (Quadro).