Dias 20 e 21 de novembro participei de uma mesa no AATS Cardiovascular Valve Symposium. A tônica do Simpósio foi a convivência da prática clássica do tratamento cirúrgico com a inovação sustentada pela alta tecnologia. Atenção especial foi dada aos efeitos sobre qualidade de vida e sobrevida em vários subgrupos de pacientes. Uma troca de experiências em alto nível entre colegas americanos, europeus, latinos e brasileiros. Valeu para um final de semana prolongado pelo feriado em São Paulo. Serviu para reforçar a opinião: novas técnicas, velhas atitudes.
Há algum tempo, procuro captar as apresentações em Congressos utilizando um método em que a matéria prima Princípios Fundamentais II e V é moldada numa estética da Bioética. Ele facilita demonstrar o admissível no mundo real da beira do leito brasileira, de certa forma distinguindo o que o médico deve saber e o que, como e quando o paciente pode receber.
Ao final de 50 falas, pude arrumar conceitos e exemplos em algumas lições. Apresento-as, a seguir, visando, como de hábito, especialmente ao jovem médico e entendendo que elas podem lhe servir de orientação para outros campos da Medicina.
- O uso de Diretrizes clínicas constitui unânime e vigoroso ponto de referência para tomadas de decisão. Entretanto, é ponto de partida que remete a mais de uma possibilidade de definição de rumos. Elas não podem ser ignoradas como bússolas, mas não devem aceitas como algemas. Pois, elaboradas minimizadas para doença, acabam aplicadas a distintos doentes. O que requer condução clínica mantida nas mãos do médico, tão humanamente livres quanto cientificamente preenchidas.
- Há dificuldades de assegurar antecipadamente cada movimento do desenrolar do método recomendado pela Diretriz- clínico, cirúrgico, intervencionista. O clínico é mais uniforme em relação a classes farmacológicas, doses e tempo de uso, enquanto que os passos planificados dos demais são executados sob forte influência das realidades de cada momento do processo de aplicação. Por um lado, o próprio planejamento estratégico terapêutico, no caso das valvopatias, sofre os impactos da incessante sucessão de novidades variantes a reboque da recente simbiose entre próteses e cateteres para uso terapêutico intervencionista isolado ou híbrido com a cirurgia. Com frequência, aponta-se um pormenor motivado por “novos” resultados, inclusive inéditos para certas circunstâncias clínicas, uns já com certo grau de sedimentação sobre superioridades dado pelo volume acelerado de aplicação e outros ainda preliminares, lidando com a etapa da não inferioridade, mas promissores e que acontecem num curto prazo em termos de história da Medicina. Por outro lado, entusiasmos não faltam para lapidações “em campo”. Eles alimentam-se na esteira do “gosto” de cada profissional pelo que pratica como método invasivo, interesse ligado à subespecialidade e ao prazer profissional de poder contribuir com certos toques benéficos e/ou imprescindíveis para o caso. Considerações em relação a achados determinarem táticas cirúrgicas de inspiração no momento estão longe de serem inéditas na área da Medicina, mas, agora e de modo crescente, novas habilidades peculiares a recém-tecnologia pesam sobre ajustes da intenção idealizada, demandando constante curva de aprendizado e recomposições aceleradas da experiência pessoal e de equipe. Novos tempos, sem dúvida, e o jovem médico precisa neles embarcar e propor-se a reciclagens cada vez mais próximas.
- Reforça-se, assim, a necessidade que tem o jovem clinico de estar consciente de que quando ele lê uma nova Diretriz clínica ou a relê para aplicar no Ambulatório e, há recomendação para um procedimento invasivo, a execução pode subentender métodos que podem já estar um passo além, que serão planejados para o caso, é verdade, mas que estarão sempre sujeitos a repiques do percurso até o paciente (formulação de estratégias) e já no paciente (decisões em campo). O jovem médico deve supor que ebulições invasivas -“revoluções” modificadoras do status quo, inclusive imediatas- estão acontecendo em várias partes do mundo, ou seja, haverá sempre algo à frente que um membro da equipe já pode conhecer em função do intercâmbio entre colegas, presencial ou na literatura, e dispor-se a praticar, mais habitualmente envolvendo quem pratica método invasivo. Assim, o jovem médico está recomendando sempre uma verdade mutável, com validade incerta e cujas limitações podem até já serem contornadas por um saber técnico com presumível validade de momento e expectativa de um consenso a posteriori. A Bioética é essencial para sustentar reflexões sobre a excelência na beira do leito em face a estas questões de maior liberdade de atuação direta no interior do corpo do paciente, em relação à indireta apanágio da terapêutica clínica- é o paciente quem ingere o comprimido, por exemplo-, com alto nível de padronização de uso. Acresce que tais liberalidades “em campo” costumam ficar ocultas das interligações do Pentágono da beira do leito.
- É para insistir. Inovações e variantes invasivas são utilizadas assistencialmente em certos Serviços antes de globalizadas “oficialmente” pelas Sociedades de especialidade, incluindo cortes, pontos, desconstruções, reconstruções e implantes sem bisturis e agulhas, tanto adstritos às descrições originais das técnicas, quanto com toques de personalizações a serem “doados” ao mundo científico. A Medicina como arte sustentada pela ciência. Hipocraticamente, não há patente numa “boa sacada sobre a técnica invasiva”- como há numa pesquisa de fármaco-, a gratificação pela ideia e a possibilidade de epônimo são suficientes. Imortalizam, inclusive. A Bioética contribui para conscientizar o jovem médico sobre diferenças entre a autorização pelo paciente para detalhamentos invasivos e clínicos. É nítido como uma modificação técnica invasiva de pequena monta não necessita de uma pré-documentação em prontuário como ocorre com aquela clínica – a respeito de indicação, dose, adversidades, por exemplo-, e ela como que fica oculta na eventualidade de um entendimento de erro profissional. A “bula” do método invasivo é dinâmica, cada tempo está sujeito a ajustes por várias razões, do médico e do paciente. Esta maior “liberdade”, intrínseca em função de um imediatismo de observação, é motivo de apreciação pela Bioética na medida em que há referências na literatura apontando que Diretrizes clínicas mais do que contribuírem para proteger o médico contra acusações de má-prática estão servindo de material acusatório, em face dos ajustes que são habitualmente necessários na aplicação. É essencial repetir que uma Diretriz clínica é uma bússola e não uma algema e, assim, a eticidade de documentar os ajustes realizados no prontuário do paciente. Mas, modificações técnicas de pequena monta durante um ato invasivo, podem não resultar explícitas e, portanto, não serem analisadas como fator de dano, deixando a carga acusatória sobre o ajuste que foi realizado para a recomendação de procedimento. Em outras palavras, o holofote do possível erro profissional focado mais na análise da prudência que precedeu a tomada de decisão do que no zelo na aplicação em conformidade com o consentido.
- O clima acadêmico tende para a publicação de atualizações de Diretrizes clínicas cada vez mais próximas umas das outras. É saudável para a Medicina, mas a relação médico-paciente é mais imediatista e complexa. Nem sempre haverá tempo para aguardar conclusões de pesquisas em andamento. Cada caso pertence ao momento validado da Medicina globalizada e ao conjunto autorizado pelo sistema de saúde local. Uma corrida eterna para a máxima contemporaneidade da beira do leito e da bancada sobre uma plataforma de estabilidade ética.
- Aplicadores de métodos terapêuticos invasivos parecem preocupar-se mais do que clínicos em confirmar objetivamente a declaração do paciente de que é assintomático. Eles entendem que a história natural encontra-se avançada e que as manifestações seguem proporcionais aos aspectos fisiopatológicos. Uma hierarquização da anormalidade morfológica de grau importante, que eles sabem reverter por ofício, sobre a individualidade das consequências clínicas. A Bioética vê com certa apreensão esta postura de desconfiança na relação médico-paciente com alegações de favorecer o prognóstico. Uma coisa é o paciente concordar que se mantém a(oligo)ssintomático porque faz restrições de demanda física e, assim, participar da tomada de decisão perfeitamente conscientizado do fato, expressando a sua satisfação ou não com a qualidade de vida resultante da auto-limitação. Outra coisa é o médico transparecer que duvida da veracidade da palavra do paciente. É essencial preservar a noção que o paciente tem que assumir a responsabilidade pelo que diz, e se estiver mentindo, é ele que estará sendo a fonte de eventuais prejuízos à saúde. Uma atitude de paternalismo forte com desconfiança e direcionada para um “desmascaramento” não cabe, ao mesmo tempo que não se deve aceitar que se justifica num anti-indiferentismo sustentado na premissa que pacientes costumam apresentar desencontros entre pensamento e comunicação e que métodos científicos permitem revelar qualidades e quantidades mais ajustáveis aos itens das Diretrizes clínicas.
- O Simpósio da AATS reforçou a existência de várias Soberanias: A Clínica é soberana, a Diretriz é Soberana, o Cirurgião/Hemodinamicista é soberano em campo, o Paciente é soberano no consentimento. Um prato cheio para conflitos (”Alô Bioética!”). Se é fato que cada vez mais valoriza-se a eficiência com que um time multiprofissional e interdisciplinar sustenta dados e fatos para a recomendação diagnóstica e/ou terapêutica, tal conceito precisa ser ampliado para a execução respeitosa do consentido pelo paciente. Os partícipes aplicadores precisam estar afinados com os limites que foram individualizados no ato do consentimento livre e esclarecido. Em outras palavras, a Bioética alerta que a interface entre Diretriz clínica e consentimento pelo paciente para a aplicação de um procedimento invasivo está mais preenchida para a realização em si do que para especificações técnicas, qual bula do mesmo. Licença para realizar inclui que o consentimento pelo paciente obtido pelo clínico em nome da Equipe, é passível de ser entendido pelo cirurgião/hemodinamicista como contendo uma “carta branca” que autoriza “versatilidades” no uso do método decidido, o que é classicamente reconhecida na excelência cirúrgica. Estas “versatilidades” são bem-vindas em função da visão utilitarista de plásticas valvulares e de correções “difíceis”, que são mais frequentes- e ousadas- quanto mais se está avançado na curva de aprendizado (experiente), sendo que o aprendido num método tem portabilidade para outro análogo. Em relação ao Princípios da Bioética, tais aspectos reforçam o valor da Segurança (Não Maleficência) acima mesmo da Beneficência. Contudo, uma questão fica no ar: O “lápis e borracha” num procedimento invasivo tem limites? Como ela se relaciona com a afirmação que o médico tem que garantir o método e não o resultado? O que seria excesso e o que seria carência?
- Por último, registro que a palavra Bioética foi mencionada uma única vez no Simpósio. Mas não faltaram discussões com evidente formatação de Bioética. Reforço que a Bioética tem utilidade para todos, embora de uma forma anônima. É preciso divulgá-lá!