Bioamigo,habilitar e configurar um smartphone é simples, complexo é habilitar e configurar o cidadão ao bom uso do mesmo.
O toque do telefone fixo foi sempre uma prioridade, muito provavelmente desde o escocês Alexander Graham Bell (1847-1922). Interrompe-se a conversa, sai-se correndo do banheiro, acorda-se. Incomodao tocar e o não atender prontamente. Antigamente, pessoas ocupadas tiravam o fone do aparelho fixo do gancho. Que o telefone ficasse também ocupado.
O smartphone ampliou o cenário, mudou comportamentos. Qualquer ambiente com sinal da operadora permite o uso desta tecnologia de comunicação portátil, imediata, útil, resolutiva, incomodativa e perigosa.
Se fármaco fosse, comportaria uma bula extensa. Porque cabe pensar em dose, composição, advertência, adversidade, interação. Afinal, um smartphone pode ser útil num momento eperigoso noutro.
Na maior parte do dia estamos com alguém mais ou menos próximo. Somos seres sociais. Pode-se supor que cada um tenha um smartphone consigo. Idealiza-se, então, a necessidade de pressupostos de civilidade. Inexiste um Código de civilidade queregule desejos de imediatismo de comunicação em não conformidade com certos ambientes e várias situações. Houve necessidade de providências incisivas para que a poluição pelo fumo fosse contida, e, da mesma forma, um autodomínio “espontâneo” sobre o a poluição sonora do smartphone está longe de ser esperadono dia-a-dia.
Neste contexto, aspectos técnicos e bom senso, é verdade, controlam ímpetos e formam posturas de restrição ao uso do smartphone. Ou seja, uma educação sobre polidez, sobre o que se faz e o que não se faz sobre o que se deve levar a sério, é possível.
É universal em viagens aéreas a obediência à solicitação de desligar o aparelho, colocá-lo no modo avião. Há a conscientização pela segurança do voo (inclui para si) e o propósito de não passar pelo constrangimento de julgamentos moralizantes pelos demais passageiros e pelatripulação. Por outro lado, ninguém imaginaria o árbitro de futebol pedir para o jogadoraguardar um pouquinho para bater o pênalti para que ele possa atender o smartphone, diante das expectativas de um estádio lotado? –“… não fique assim mamãe, a torcida xinga qualquer um…”. Não haveria nem condições acústicas. E como ficaria a noiva se o noivo tirasse do bolso o smartphone tocando em plena cerimônia do casamentoEla, a pessoa mais valorizada do cenário, se sentiria menos importante do que o objeto ressonante e o interlocutor à distância, que “apenas” queria dar os parabéns.
Se existe uma etiqueta do uso e não uso do smartphone que funciona para determinados ambientes, deveríamos refletir sobre uma Bioetiqueta da Beira do leito. Assim como a Bioética nasceu como uma ponte para o futuro, a Bioetiqueta da Beira do leito seria ponte entre diferentes práticas de comunicação num ambiente de atenção à Saúde. Há não mais de três décadas, a mãe aflita aguardava o pediatra chegar às 15 h no consultório para lhe telefonar. E, muitas vezes, o retorno era feito ao final das consultas. Hoje, as gerações subsequentes de pediatra são alcançadas passando visita, no meio de uma conduta, numa resolução não menos premente do que a pretendida e facilitada pelo simples aperto do dedo em cima da palavra pediatra nos favoritos do smartphone. A simplicidade motiva o uso e apetece o abuso.
Tratando-se da beira do leito e considerando que os médicos costumam frequentá-la portando um smartphone, uma analogia parece aplicável para preencher a lacuna da inexistência de um Código de civilidade da beira do leito a seu respeito. Explico.
Estar à beira do leito implica em ser sensível à circunstância do atendimento como fator de delimitações da utilidade e da eficácia conceituais. Em função das mesmas, métodos diagnósticos e terapêuticos validados pela Medicina apresentam vantagens e desvantagens ao indivíduo-paciente. Decidir-se pelo uso ou pelo não uso sustenta-se num raciocínio que parte de uma rigidez técnico-científica de evidências e se flexibiliza em atitudes influenciadas por disposições das personalidades dos envolvidos. Uma tríade destaca-se neste processo de harmonização entre disponível e aplicável: individualidade, segurança e consentimento.
Sugiro que elas possam ser aproveitadas como palavras-chave nas considerações sobre Bioetiqueta da Beira do leito para o uso do smartphone. A interação facilita evitar reducionismos na análise de desproporções entre o conhecimento da doença e aincorporação dos valores da pessoa que dela sofre. E ao mesmo tempo, fortalece acompreensão da importância de um ser humano cuidando de outro, o que é fundamental na humana profissionalização do jovem médico.
1-A individualidade empregada no atendimento às necessidades clínicas conjuga o devido respeito: a) ao acervo da Medicina; b) à expertise do médico; c) aos valores e às preferências do paciente. Na questão do uso ou não uso do smartphone, ela está ligada ao valor relativo que se dá ao outro, incluindo certa escala “hierárquica”.
Idealmente, ambos, médico e paciente, devem estar num mesmo plano de consideração mútua. Todavia, é comum verificar que há médicosque se põem acima e tomam iniciativas bruscas fora do contexto do atendimento- atender o smartphone, por exemplo-, afastando-se do local em busca de certa privacidade, ou interrompendo a leitura do calhamaço de exames que o paciente trouxe, extremamente frustrante para as expectativas do mesmo. Enquanto que o paciente, ao contrário, habitualmente desliga o aparelho previamente, ou, quando ele toca, se desculpa e apressa-se a apertar o botão off. Mesmo espaço, distintos rituais.
Mas, há o inverso. Quantos pacientes, diante do médico, em pleno decorrer do atendimento, já se acharam no direito de dar mais importância ao acontecimento externovia smartphone do que a sua consulta? Coleciono número razoável e confesso que não consigo deixar de transparecer o meu pensamento, mas calejado, sem nenhuma influência no prosseguimento do atendimento.
Não limitações de desejos conjugam-se a exageros de imaginação e provocam inquietações, que, no caso da chamada telefônica, vence fácil qualquer pretensão de moderação. É de se supor que o foco no motivo do próprio atendimento seja umdesassossego bastante para inibir compulsões do uso do smartphone pelo paciente- e acompanhante. Já o profissionalismo seria motivação ética para o comedimento do médico. Pois não passaria pela cabeça num ambiente de contenção de smartphones ver uma aeromoça ou um ator interromper a sua atuação para atender o smartphone: “-… Liga mais tarde, estou em cena…”.
2-A segurança diz respeito ao potencial de malefícios pelo uso do smartphone. Distrair-se (http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3437811/pdf/rmhp-5-105.pdf; http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3447059/pdf/1841440.pdf), tirar o olho e a mente indevidamente do paciente num atendimento,dá chance de haver um retorno menos comprometido, quer pela interrupção desviadora, quer por uma “continuidade” mental do telefonema. Um novo “problema” assim advindo revira a mente por solução, fragmentando o espaçoda “hora marcada para uma atenção presencial”.
Qualquer reflexão sobre Bioetiqueta da Beira do leito sobre uso ou nãouso do smartphone faz temer desvios das boas práticas em momentos com altíssimo teor de concentração na atividade. A condição de Emergência fala por si, ela concentra a atenção e limita qualquer inquietação externa ao atendimento. Mas perturba.
O Centro Cirúrgico sempre foi figurado como santuário do cirurgião. Exige cuidadosantipoluidores do meio ambiente. O smartphone veio criar um potencial de poluição sonora. Neste sentido, é de se questionar se o hábito atual de o anestesista “cuidar” dossmartphones da equipe está em conformidade com a segurança do ato operatório, se ele teria de lavar as mãos em seguida, se não causa distração pelo recado, etc… etc… O campo cirúrgico é indivisível na atenção.
3-O consentimento completa a tríade. Na visão essencialmente autonomista, é capital a disposição para o diálogo esclarecedor durante um atendimento. Entre um paciente que é quem mais se conhece como sofredor da doença e um médico que sabe como qualificar diagnóstico, terapêutica e prognóstico. Nesta linha de participação ativa do paciente, é que vale refletir sobre aconveniência do consentimento do paciente para o eventual uso do smartphone pelo médico no decorrer do atendimento. No Consultório, por exemplo, como não se trata de um ato médico, a secretária estaria autorizada a conhecer a opinião do paciente: “ -… doutor, o próximo paciente prefere que o senhor não atenda o smartphone durante a consulta…”. Dito e a fazer!
Todos somos vulneráveis, só o fato da interdependência a outra pessoa assim determina. Temos a capacidade para uma simultaneidade de articulações. Vemo-nos hábeis a recomeçar uma atividade interrompida, sem nenhuma solução de continuidade. Contudo, podemos não reconhecer que saímos do trilho, que entramos numa atalho de equívoco. Mais adiante, seremos surpreendidos pela trágica percepção que praticamos uma imprudência ou uma negligência, cujo gatilho “mortal” foi o uso do smartphone, sabe lá para atender o quê.
Pensemos numa Bioetiqueta da Beira do leito para uso ou nãouso do smartphone. Ante ameaças, vale a transformação pela cautela. Um modo beira do leito pode ser bem-vindo!