Há o nível tecnocientífico de realidade em que o médico libera sua memória de atuação e imagina o paciente do momento obtendo resultados semelhantes. Nesta situação de “copy-paste” ajustado, é como se o médico fechasse os olhos, mentalizasse casos superponíveis – dispneia por insuficiência cardíaca, por exemplo – por ele cuidados e numa “flecha” desde o passado para o futuro transferisse o resultado aprendido – eupneia – para o paciente do momento sustentado pela prescrição de mesma conduta. É o nível da beneficência.
Há o nível de realidade da objeção à conduta pelo paciente que exerce voz ativa a ser respeitada com base em seus pontos de vista, memória e imaginação, dos quais não precisa dar maior satisfação acerca dos desejos, preferências, objetivos e valores. É o nível da autonomia.
Há o nível de realidade da tomada de decisão efetiva, pois, ou se aplica ou não se aplica o método que foi simultaneamente imaginado eficaz pelo médico e inadmissível pelo paciente. Um deles deve predominar, evidentemente, passível de acertos adaptativos que não seriam a proposição original. Pela manifestação heteronômica do Supremo Tribunal Federal brasileiro no caso de paciente Testemunha de Jeová, o nível de realidade a predominar é o da objeção do paciente e o médico deve considerar possibilidades de alternativas, eventualmente aceitas pelo paciente.
A contraposição do nível de realidade de objeção pelo paciente ao nível tecnocientífico de realidade desperta considerações sobre proteção da consciência do médico, essencial para atuações morais e éticas. Por uma análise inicial, a conexão médico-paciente estabelece-se baseada na confiança que haverá respeito mútuo ao médico que expressa recomendações pelo médico e ao paciente em seus posicionamentos pessoais, ou seja, igualdade de liberdade de expressão.
O “trabalho” da consciência do médico na conexão médico-paciente deve estar em conformidade com os entendimentos sobre beneficência/não maleficência alinhada ao estado da arte de modo que as escolhas possam estar a ela sintonizadas perante influências tanto racionais quanto emocionais.
O médico que respeita e adere a sua própria consciência certamente tem mais probabilidade de respeitar a consciência e a autonomia do paciente pois mais bem entenderá o significado de violação da consciência. O que significa que haverá um dilema a ser equacionado no entorno de Posso?/Devo?/Quero?
É essencial haver a intenção pela busca de um equilíbrio entre a disposição do médico de aplicar a medicina beneficente e a recusa pelo paciente de se submeter, o que materializa-se, essencialmente, pelo diálogo incentivado pelo médico, pelo intuito de entender o outro, procurar ajustes, sempre considerando que violações da consciência enfraquecem o princípio da autonomia, pois uma desigualdade nociva se forma. Por outro lado, se mesmo direito de objeção não for dado ao médico, não é possível argumentar que o princípio da autonomia está alinhado ao direito da pessoa de escolher seu próprio curso moral.
Neste contexto que exala ambiguidades, que traz dificuldades práticas, uma visão libertária da autonomia do paciente enfatiza que os pacientes devem ter liberdade de manifestar consentimento ou não segundo próprias convicções a recomendações médicas. Já uma visão racionalista tende a restringir as escolhas do paciente a uma racionalidade prática.
O médico entremeado entre a medicina baseada em evidências que o empurra para a frente e a objeção do paciente que o empurra para trás deseja dar um salto e se abrigar num local que lhe forneça um juízo sobre a situação. A estrutura, entretanto, pode lhe fornecer ampliação dos aspectos éticos, morais e legais intervenientes, municiar aspectos heteronômicos, pois, é o próprio médico – vale dizer, uma atuação autonômica de uma autoridade tecnocientífica – que precisa decidir sobre sua identidade profissional frente a não consentimentos em situações de maior gravidade clínica e assumir responsabilidade sobre tomada de decisão em nível de realidade libertário ou racionalista.
Qualquer posicionamento do médico perante não consentimentos estará invariavelmente sujeito a críticas pela inevitabilidade de contraposições entre liberdade teórica e liberdade prática. O paradoxo de sorites (monte em grego) formulado por Eubulides há 25 séculos é ilustrativo. Mil grãos é um monte, um grão não é monte, 999 é ainda um monte e este grão transferido do monte não faz de 2 grãos um monte. Quantos grãos definirão uma linha de corte entre monte e não monte? Uma autoridade constituída para definir objetivamente poderá fazer uma série de apreciações inteligentes, mas qualquer número “cravado” terá embutido forte subjetividade por mais que possa vir a ter força de lei. Eu sugiro 489 grãos, e você bioamigo?