Parece ser mas não é. Mas até que poderia. Enfezado não tem nada a ver etimologicamente com o intestino, mas a ciência demonstra cada vez mais o poder do intestino de influenciar reações do corpo humano em geral.
As bactérias intestinais formam algo parecido com um órgão endócrino e produzem múltiplos “hormônios” que atuam à distância sinalizando a vários locais do organismo como se comportarem. Pois é, se é verdade que bactérias prepararam o nosso planeta para ser habitado por qualquer tipo de ser vivo, tudo indica que o ser humano continua dependendo destes microrganismos. Nossas bactérias são patrimônio valioso, não viveríamos sem elas presentes em vários locais do nosso corpo.
São cerca de 2 kg de 100 trilhões de microorganismos de mais de 1000 distintas espécies cuja composição no intestino tem alto valor nos primeiros meses de vida, é influenciada pelo tipo de parto, aleitamento materno e eventual uso de antibióticos e influencia a constituição do sistema de imunidade. Experiências trouxeram evidências científicas sobre bactérias como fatores de desenvolvimento da obesidade, diabete melito, asma, brônquica, autismo e esquizofrenia, além de comportamentos emocionais ditados por manipulações da microbiota intestinal.
E porque há 10 células bacterianas para cada célula humana e 150 vezes mais genes bacterianos do que humanos em cada ser humano coabitando nosso corpo e exercendo impactos sobre a saúde de modo bem mais amplo do que comumente se conhece, o mais da afirmação de Sigmund Schlomo Freud (1856-1939) Não somos apenas o que pensamos ser, somos mais deve incluir a microbiota intestinal.
Um reforço é que apenas um terço das bactérias intestinais é comum a todos os seres humanos, portanto a maioria é específica da pessoa. Genoma à parte, um dos mistérios apontados pelo Professor de Pneumologia na década de 60 do século passado era por que a tuberculose pulmonar foi a causa-mortis de famosos como Noel de Medeiros Rosa (1910-1937), Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871) e D. Pedro I (1798-1834), falecidos antes dos 40 anos de idade, enquanto que muitos outros contemporâneos mostraram-se imunes ao Mycobacterium tuberculosis, o bacilo descoberto em 1882 por Robert Koch (1843-1910). Naquela época não se pensava o intestino como maestro.
Utilizando uma figura bem moderna, a experiência de um hacker é eficiente na proteção contra ataques cibernéticos, a microbiota intestinal “orienta” o sistema imunitário a respeito de bactérias benéficas e maléficas, deste modo preservando-se. Um poder bacteriano em prol da harmonia do bem-estar.
Neste contexto, é útil lembrar do ensinamento do biólogo evolucionista Jared Diamond (nascido em 1937). Ele nos posicionou que os micróbios causadores de doença “não têm o intuito de matar o hospedeiro”, mas modificá-lo como estratégia para a perpetuação da espécie. Tosse, espirro, diarreia, dermatite, que chamamos de sintoma, são para eles meios de propagação para procriar em novos hospedeiros. As bactérias residentes no intestino têm o objetivo de reduzir este comportamento “inimigo” por meio da influência sobre a imunidade, ou seja, evitar que haja sintomas multiplicadores da “concorrência”.
Assim, é essencial termos em mente as noções de órgão “bacterianamente” saudável – como intestino saudável-, disbiose – microbiota desajustada- e privação da microbiota – a falta de certas bactérias. Estudos sobre a asma brônquica exemplificam. Duas publicações de 2015. Uma colaboração entre Austrália, Inglaterra e Estados Unidos da América concluiu que há uma relação entre a microbiota do nasofaringe durante o primeiro ano de vida e o desenvolvimento de asma brônquica, com implicações pelo uso de antibióticos. Uma colonização precoce por Streptococcus foi um forte preditor da ocorrência futura de asma brônquica http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1931312815001250. Na outra pesquisa, realizada no Canadá, verificou-se que uma disbiose intestinal nos primeiros 100 dias de vida tem influência sobre o desenvolvimento da asma brônquica, também com implicações pelo uso de antibióticos, sugerindo que bactérias intestinais exercem proteção contra a asma brônquica e que probióticos poderiam vir a ter espaço terapêutico nesta afecção. http://stm.sciencemag.org/content/scitransmed/7/307/307ra152.full.pdf.
Amostras de bactérias intestinais de gêmeos – um obeso, outro magro- foram inoculadas em ratos especialmente preparados. A população de ratos que recebeu implante bacteriano de gêmeos obesos rapidamente ganharam peso, o que não aconteceu com o outro grupo (Quadro). Outra observação importante foi uma interconectividade entre os organismos dos ratos quando representantes de cada grupo foram colocados em mesma gaiola. Houve transferência microbiana do rato magro para o obeso e influência no metabolismo, sugerindo impacto do meio ambiente. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3829625/pdf/nihms525803.pdf.
Mas o o bioamigo deve estar pensando, o que é que a comunicação entre microorganismos residentes e células do organismo em geral, via sinais físicos e químicos, que afeta a saúde fora de uma ideia de infecção tem a ver com a Bioética?
É que o conceito que vai surgindo que todo ser humano é uma comunidade ou um ecossistema em que células microbianas e células humanas convivem numa proporção de 10:1 e de 150:1 considerando genes, ou seja, estamos mais bactérias, inclui a presença de um certo eixo microbiota intestinal-sistema nervoso central. Este canal de comunicação interna poderia exercer alguma influência sobre o que chamamos de auto-determinação de um indivíduo. Mais do que um indivíduo, seria, então, a comunidade que responderia a uma solicitação de consentimento por exemplo. Fertilidade imaginativa? Ficção? Creio que vale a reflexão instigada pela dúvida.
Uma síntese do tipo Minhas bactérias respondem por mim faz lembrar Henry Andrews Cotton (1876-1933). Sob a hipótese que doenças mentais seriam causadas por bactérias intestinais, ele realizou colectomias “antibióticas” -além de outras extrações de órgãos- com alta mortalidade e sucesso duvidoso. A maioria dos casos foi assim conduzida sem nenhum consentimento de paciente ou de familiar. Este episódio onde uma aparente insanidade do médico suplantou a dos pacientes por ele atendidos é um dos marcos históricos da Maleficência do século XX, uma forte razão do desenvolvimento da Bioética, evitar que alguém tenha uma “brilhante” ideia e a coloque em prática sem salvaguardas da sociedade.
Mas e agora? Estas novidades da Biologia microbiológica “reabilitariam” o Dr. Cotton um século depois? Teria sido um visionário desastrado e não um eticopata? Creio que o juízo histórico nada muda sob o ponto de vista de uma repulsa ética, todavia reforça que ideias que podem ocorrer pela vivência profissional, sabe lá como a criatividade se desenvolveu, não devem ser impugnadas açodadamente tão-somente por um raciocínio aparentemente lógico porque embasado no conhecimento existente. Ao contrário, elas precisam ser direcionadas para o rumo dos devidos pedágios da Pesquisa.
O Princípio da Autonomia tem vigoroso alicerce tradicional no aspecto metafísico, centro no ontológico, uma atividade individual priorizada pelo valor moral (Uma “primeira geração” do conceito de Autonomia). Contudo, acumularam-se provas que influências robustas do ambiente não podem ser desprezadas no processo de tomada de decisão. É o influxo de um familiar, de uma comunidade ou da sociedade, muitas vezes sob efeito de inseguranças pessoais. Originou-se, assim uma segunda geração do conceito de Autonomia. Inclusive, uma melhor convivência com o chamado Paternalismo fraco que não desiste do convencimento até o limite da coerção e assim evita uma certa burocratização do consentimento. Deseja-se que a autonomia seja sinceramente exercida por uma entidade e não por uma representação, no sentido da existência ou não de um poder causal exercido por um todo.
Desta maneira, é consistente uma relação entre a Autonomia e a Autoridade quando o indivíduo aceita determinantes externos e ajusta a sua decisão “autonômica pura” –preferiria A– por orientações heteronômicas- mas decido-me por B. A própria recomendação do médico é uma heteronomia incorporada à própria decisão pelo paciente. Ele está aparentemente livre para resolver, mas a inserção no meio -qual os citados ratos em mesma gaiola- tem o poder de causar apreensão sobre a responsabilidade de uma autêntica decisão e facilitar transferências de opinião.
Estas duas “gerações” de Autonomia preservam o conceito da decisão humana, com mais ou menos influência de outro ser humano. Contudo, a ideia de um ser simbiótico humano-bactéria, onde este outro ser vivo determinaria impactos na célula humana com resultantes comportamentais relacionadas a moléculas de sinalização – eixo intestino-cérebro, por exemplo- traz a possibilidade de uma terceira geração de Autonomia. O acréscimo de fator ecológico em parceria com orgânicos e biológicos na constituição de afetos.
Desta forma, um aparente simples Sim doutor, Não doutor admite uma individualidade bem mais dinâmica, com a complexidade da vocalização afirmativa ou negativa em função da tripla inter-relação: individual, social e microbiológica. Foi o Premio Nobel de 1969 Joshua Lederberg (1925- 2008) quem disse que deveríamos considerar um microbioma, além do genoma.
Será que somos o que o nossas bactérias são? Seremos parceiros em tomadas de decisão? Será que a prática do transplante de matéria fecal para combate a doenças intestinais afetaria o eixo intestino-neural? Evidentemente, sem nenhuma intenção de reduzir o ser humano nem a genes nem a bactérias, será que estamos dando um passo para conhecer algum ponto sobre o que Blaise Pascal (1623-1662) retratou como O coração tem razões que a própria razão desconhece? O mesmo coração que não vê e portanto não sente as bactérias?
A Bioética da beira do leito acompanha com vivo interesse o controverso tema da “Psicobiótica”.
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