A beira do leito não para de pensar num amanhã melhor. Nunca está satisfeita com o possível de hoje. Pesquisadores científicos, desenvolvedores de tecnologia e educadores médicos são continuamente cobrados por inovações e renovações. O protagonismo de um médico-cidadão é idealizado para almejar, superar e realizar.
Nesta avidez de qualidade, médicos do Departamento de Medicina da Universidade de Chicago apresentaram, recentemente, os resultados de uma pesquisa de opinião de estudantes de Medicina motivada por reformas curriculares que valorizaram o desenvolvimento do caráter na educação médica. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4575457/pdf/13104_2015_Article_1434.pdf
Quaisquer proposições para a eficiência do ser médico interessam à Bioética da beira do leito. Eu costumo ouvir a palavra caráter aplicada a pacientes e a médicos com certa frequência de estudantes de Medicina e de jovens médicos durante debates sobre comportamentos e o Princípio da Autonomia. E como a referência a caráter costuma vir acompanhada dos termos temperamento e personalidade com interpretações superpostas de significado, passei a utilizar um diapositivo com conceitos para facilitar a exposição das diferenças (Quadro I).
Um jovem idealista da Medicina pode ter um temperamento mais reticente ou mais explosivo, uma personalidade que contribui para abrir portas com mais ou mesmo facilidade, mas, segundo Elmer G. Letterman (1897-1982), é o caráter que as mantém – ou não- abertas. No ambiente da beira do leito, estilos, expressões e reações sustentam o profissionalismo, preparação e capacidade para levar o trabalho a sério com sensibilidade moral, flexibilidade a novos horizontes, criatividade, medicina narrativa, comunicação não-violenta e comportamento sempre confiável.
Fenômeno mundial, preocupação brasileira inclusa, é uma sensação de fadiga da iniciativas educadoras e sustentadoras do profissionalismo médico. A Bioética da Beira do leito deseja contribuir para o revigoramento afinado com as nossas realidades. “Receitas de bolo” não parecem ser suficientes para resolver problemas da Ética e do profissionalismo na Medicina, sem a força que age ou que pode agir, o poder do caráter, o seu valor para clinicar bem. Pois, um método terapêutico excelente nas mãos de um “mau caráter” determina um tipo de história desagregada da sua excelência intrínseca. Abraham Lincoln (1809-1865) mostrou a sua sabedoria quando afirmou que uma forma de conhecer o caráter de uma pessoa é dar-lhe poder, o que é, evidentemente, válido, para o poder do médico na beira do leito.
A identidade profissional arraigada à consciência da responsabilidade moral ganha forma à medida que a beira do leito vai crescendo no número de horas frequentada. Não existe médico sem paciente (mais real, mais virtual) e, assim, o caráter do médico representa uma enorme caixa de ferramentas de poder, onde acumula-se e renova-se o potencial da aplicação deste poder para a excelência da atenção às necessidades de saúde. É pensamento afinado com a realidade que uma geração educa a outra. Ou seja, que uma geração de educadores médicos educa a subsequente e forma novos educadores médicos, pretendendo-se a mais adequada manutenção da qualidade. O desenvolvimento do caráter do jovem estudante de Medicina ganha com uma retroalimentação crítica dos professores. E é justamente neste ponto que a Bioética da Beira do leito preocupa-se em saber se este currículo oculto não está oculto demais.
Quando eu entrei na Faculdade de Medicina ouvi que estávamos em novos tempos, que não mais existia clima para a humilhação dos estudantes pelos Catedráticos severos que se colocavam a anos-luz da garotada, entrincheirados no Magister dixit e tendo os assistentes como porta-vozes sobre a rotina. Eles sabiam muito do que podiam saber, mas não conheciam nada do que deviam conhecer sobre preparo do médico para se tornar correto nas atitudes frente às diversidades pessoais, sociais e culturais. Creio que o discurso foi realístico, conheci professores exigentes do saber e merecedores do respeito “academicamente correto”. E após algumas décadas, pude observar que o exemplo que tive, porque não uma escola da aproximação da Faculdade ao Hospital escola, começou a entrar em fadiga. Razão para consolidar o interesse pela Bioética.
Se bom doutor beneficia-se de um “sem parar” pelo pedágio do bom caráter e este pode ser moldado nos longos 6 anos de formação do médico, o pedágio do educador médico é essencial. Como salientado pelos autores da referida publicação, os pacientes esperam contar com médicos de bom caráter além do conhecimento sobre Medicina. De fato, insatisfações sobre atitudes – especialmente no campo da comunicação- têm muito mais chance de acionar tribunais de Ética do que aquelas referentes ao técnico-científico, o que parece querer endossar filósofos que afirmam que a presença da virtude moral faz o homem parecer mais humano.
Mas, afinal, o que disseram os estudantes entrevistados em duas etapas, no terceiro e no quarto ano da formação médica? Essencialmente (Quadro II):
- Um bom médico não depende de ser boa pessoa – cerca de 30% endossam.
- Educadores médicos são responsáveis pelo treinar o estudante para ter bom caráter – cerca de 70% endossam.
- Educadores médicos devem focar em ensinar a ciência da Medicina mais do que experimentarem moldar o caráter do estudante – cerca de 40% endossam
- Receberam alguma orientação para mudança de algum traço do caráter- cerca de 50% confirmam.