Um sinal físico à mão, uma imagem que salta à vista. Eficiência à beira do leito, moderna na dimensão de conectividade, elegante no sentido de rede à beira do leito. Um dito propedêutica básica, outro dito propedêutica complementar.
Complemento é o que é preciso juntar, dar o acabamento. Exame complementar é, originalmente, a fonte de informação que dá remate a uma hipótese diagnóstica em Medicina. Tradicionalmente, ele sucede à anamnese e ao exame físico e tem sua necessidade determinada pelo raciocínio clínico.
Novos tempos – hipertrofia de complementos e atrofia de sinais básicos- provocaram variações nos momentos da solicitação pretensamente suplementar. Antecipações do exame complementar habitam o mundo real, sendo tanto malvistas porque subvertem o ritual tradicional, quanto bem-vistas pelo benefício ao alívio e ao prognóstico em função da presteza e da acurácia.
O acesso ao diagnóstico desloca-se cada vez mais das mãos semióticas para a “biometria” ocular, motivado pela imagenologia. De fato, o poder clínico do exame complementar ascendeu nas últimas décadas acompanhando uma transferência de “reputação” desde o binômio anamnese-exame físico, uma redistribuição do valor de cada método diagnóstico. Ele passou a ser menos complemento e mais núcleo central. Pela diversidade de informações, o exame complementar aproximou-se da indispensabilidade. Reduziu-se drasticamente o número de atendimentos em ausência de algum exame complementar. A sua densidade por paciente/dia na esfera de UTI atinge dois dígitos, habitualmente. No InCor, 30% dos cerca de 300 000 exames/mes de Laboratório Clínico referem-se a pacientes internados em UTI, o que representa 50 exames/hora.
A promoção de uma cultura do exame complementar é sustentada pela tecnologia e traz a necessidade da apreciação ética na interface com o conceito tradicional da Clínica soberana. Recorde-se que a inquietação acerca do impacto da tecnologia sobre o ser humano compõe o DNA da Bioética conforme notado por van Rensselaer Potter (1911-2001), o Pai da Bioética.
Assim, cada médico precisa ter o seu juízo de valor acerca da hierarquia, caso a caso, dos componentes da triarquia diagnóstica- anamnese, exame físico e exame complementar.
A Bioética da beira do leito considera distinguir as duas modalidades clássicas de seleção, disponibilização e aplicação de exame complementar – específica e difusa- para instruir análises sobre a Beneficência, a Não Maleficência (Segurança) e a Autonomia (Quadros I, II e III) e gerar as composições bem-mal (científico) e bom-mau (pessoal) para cada circunstância clínica. .
Note-se que a noção que o exame complementar subentende a existência de situação clínica a ser melhor esclarecida pode ser expandida para a prevenção em saúde.
O exame complementar precisa trazer utilidade e contribuir para eficácia. Esta Beneficência está ligada ao conhecimento científico e fica clara numa simples avaliação de hematócrito/hemoglobina. Ambos mostram-se úteis para o diagnóstico de anemia – linha de corte da normalidade- e como instrumento de decisão sobre transfusão de sangue -linha de corte referente a prognóstico.
De uma maneira geral, a solicitação ética de exame complementar pelo médico resulta afinada com o respeito a diretrizes clínicas e a protocolos de atendimento com correta justificativa científica, em ausência de curiosidade tão-somente e de proposição descabida do paciente em função de hipocondria.
Não é incomum que o médico pense em solicitar um determinado exame complementar, mas entende conveniente aguardar. Na articulação do momento oportuno, uma hierarquia no timing de exames complementares é Beneficência porque contribui para manter o foco na prioridade clínica sem eliminar a conexão com demais necessidades.
O exame complementar desperdiça utilidade quando realização é tecnicamente reprovável. Não basta fazer, tem que ser confiável. Cada médico cria o entendimento sobre este aspecto da Beneficência/Não Maleficência (Segurança) ao longo da carreira. A conveniência do médico solicitante envolver-se na indicação do efetor- colega ou Serviço- não parece admitir regra, quer para tomar a iniciativa de recomendar, quer para responder a uma indagação do paciente. Análise técnica da qualidade do exame realizado e juízo crítico sobre o laudo emitido precisam estar afinados com a Beneficência. No caso de sólida justificativa, a recomendação de repetição do exame complementar encontra respaldo no art. 34 – É vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico… do Código de Ética Médica vigente.
Evidentemente, os Princípios fundamentais IX – A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio e XVII – As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando sempre o interesse e o bem-estar do paciente devem guiar as atitudes do médico ético.
Neste contexto, ganha realce o valor histórico o art. 48 do Código de Ética Médica de 1965: É vedado ao médico receber pagamento, sob forma de ordenado, gratificações, percentagens ou qualquer outra, de laboratórios de analises, de gabinetes de radiologia, de fabricantes de especialidades farmacêuticas, de proprietários de farmácia, casas de ótica, casa de saúde, hospitais, enfim, de qualquer pessoa física ou jurídica, a não ser por serviço médico efetivamente prestado a doente.
O método empregado no exame complementar precisa passar pelo filtro da Segurança biológica para o paciente. Intercorrências com o uso de contraste iodado, por exemplo, precisam ser evitadas. Desorganização da comunicação neste sentido não são raras, levando tanto à suspensão do exame agendado como à adversidade. A Bioética da beira do leito entende que o médico solicitante deve filtrar a possibilidade e que o Serviço executante deve fazer a segunda verificação.
O exame complementar pode ser criteriosamente recomendado pelo médico e não ser admitido pelo paciente. Nesta questão sobre propriedade do corpo doente pelo paciente e posse temporária pelo médico, a Bioética da beira do leito dá particular atenção ao equilíbrio da Autonomia como direito do paciente, que desemboca no consentimento, e como direito do médico, que se inter-relaciona com a prudência e com o zelo.
A claustrofobia, por exemplo, costuma ser determinante do não consentimento pelo paciente à realização de exame de ressonância magnética. Não faltam pacientes que manifestam constrangimento por sensação de invasão de intimidade ao toque vaginal e ao toque retal. Estes contrapontos não subentendem desconfiança no profissionalismo ético do médico, apenas circunscrevem o uso de métodos diagnósticos.
Já na situação do uso do exame complementar para fundamentar ajuste a tratamento instituído, o esclarecimento para o consentimento do paciente deve incluir os aspectos da adesão no médio-longo prazo, como é o caso do uso da varfarina. Na rotina pré-operatória, a Segurança imbrica-se com a Autonomia, qualquer eventual não consentimento pelo paciente para se submeter a algum exame subentende reavaliação pela Autonomia do médico, se é possível dispensar ou não, com desdobramentos na decisão sobre a manutenção da realização do procedimento.
O desenvolvimento da genética traz circunstâncias adicionais de natureza ética a um enquadramento classificatório do exame complementar, pelo maior afastamento ao conceito da Clínica soberana. O aconselhamento genético já está incorporado, enquanto que a chamada Medicina personalizada carrega o potencial de discussões com fundamentação bioética em função, por exemplo, do impacto emocional causado pelo exame do genoma acerca do conhecimento das doenças que possam vir a acontecer.
Neste contexto, é interessante não ignorar artigos do Código de Ética Médica vigente:
Art. 15. É vedado ao médico descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou de tecidos, esterilização, fecundação artificial, abortamento, manipulação ou terapia genética.
§ 2º O médico não deve realizar a procriação medicamente assistida com nenhum dos seguintes objetivos:
I – criar seres humanos geneticamente modificados;
II – criar embriões para investigação;
III – criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras.
§ 3º Praticar procedimento de procriação medicamente assistida sem que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o mesmo.
Art. 16. É vedado ao médico intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica, excluindo-se qualquer ação em células germinativas que resulte na modificação genética da descendência.
Propedeuta é aquele para quem o exame do paciente é mais difícil que para qualquer outro, parafraseando Thomas Mann (1875-1955): … Escritor é aquele para quem a escrita é mais difícil que para qualquer outro... A propedêutica tem uma linguagem própria usada na conexão médico-paciente. Esta comunicação do diagnóstico é captada e transmitida por múltiplas vias com relevância para o uso dos órgãos dos sentidos. A pluralidade não deve, nos tempos atuais, ser motivo de ambivalências. Ela deve gerar uma dimensão de conectividade, um sentido de rede propedêutica na beira do leito.